Como a Bahia enfrentou a pandemia de cólera de 1855

Como a Bahia enfrentou a pandemia de cólera de 1855

A quarentena decretada na Bahia e em vários estados como medida de contenção do coronavírus foi também uma das armas usadas para enfrentar a pandemia de “cólera morbus” que atingiu o Brasil há 165 anos, entre 1855-56, matando cerca de 200 mil pessoas no país.

Essa epidemia de cólera é considerada uma das mais graves que abateu Salvador e municípios do Recôncavo, provocando 36 mil óbitos na Bahia, que registrava uma população de 1 milhão de pessoas. Vários pesquisadores a estudaram, o que nos permite analisar o cenário do passado e as mudanças de hábito das pessoas que o fenômeno, considerado na época apocalíptico, provocou.

A epidemia chegou ao Brasil pelo Pará, através infectados de um navio vindo da Europa. Logo que surgiram as primeiras notícias, o governador da província da Bahia Álvaro Moncorvo e Lima procurou obter maiores informações com seu colega paraense, temendo a chegada do cólera aqui. Mas não divulgou quando os primeiros casos começaram a pipocar no povoado do Rio Vermelho em junho daquele ano.

A doença encontrou campo fértil para se propagar. Salvador e outras cidades não possuíam sistema de esgoto, nem coleta de lixo adequada. Não existia sistema de fiscalização das fontes de água que serviam à população, contaminada pelos dejetos. Embora desconhecendo a forma de propagação do vibrião do cólera - que ocorre através da contaminação da água e alimentos pelo bacilo vibrião colérico - a comunidade médica e sanitária, convocada pelo governador, adotou uma série de medidas para tentar sanear e limpar Salvador.

A criação de porcos, feita largamente nos quintais da cidade foi proibida, assim como a atividade dos curtumes e a pesca e retalhamento de baleias nas ruas. Multas e prisões foram instituídas para quem desobedecesse as ordens. Todos os navios que chegavam ao porto de Salvador tinham que ficar de quarentena e fundeados longe do ancoradouro. Mas nada parecia adiantar ante a insalubridade das moradias e desconhecimento de como a doença se propagava. Isso resultava numa grande quantidade de mortos a cada dia. Moradores de Santo Amaro e Cachoeira apavorados com a epidemia, mudavam para a capital agravando mais ainda a contaminação.

Para tentar desinfectar Salvador, o governo mandou os moradores acenderem fogueiras em toda a cidade imaginando que o fogo limparia o ar dos miasmas surgidos com a putrefação de material orgânico. O cenário lúgubre era idêntico ao que ocorreu nas cidades europeias nas grandes ondas da peste negra.

Defuntos deixados nas portas das casas, eram recolhidos diariamente por carregadores contratados pelo governo e levados nas “carroças públicas" para os cemitérios, porque os enterros em igrejas foram proibidos na cidade a partir da epidemia.

A propagação da doença afetou grandemente a economia baiana, pois muitos escravos que trabalhavam na lavoura e em engenhos, morreram, diminuindo a produção de gêneros alimentícios e do açúcar, principal item de exportação. A falta de alimentos também cousou muitas mortes. Era difícil obter carne porque os pecuaristas do interior se recusavam a transportar rebanhos para Salvador com medo da peste.

A atitude dos católicos em relação a esse clima de morte iminente foi o de apressar a elaboração de seus testamentos para não partirem sem a devida preparação, o que poderia resultar em problemas para salvar a alma no além. Assim, indicavam sepultamento em local sagrado, missas de sufrágio e a distribuição de esmolas e recursos para instituições religiosas.

Uma curiosidade é que aumentou a quantidade de casamentos religiosos de gente que vivia em concubinato, justamente para não estar em pecado se, por acaso, recebesse a visita da morte. Esse medo era alimentado pelo arcebispo de Salvador dom Romualdo Seixas. Enquanto os médicos tentavam conter o cólera com as armas e os conhecimentos que dispunham, o arcebispo atribuía os horrores da epidemia à ira de Deus, supostamente irritado pelos crimes dos homens. Em texto publicado no jornal O Noticiador Católico escreveu que remédio seria, então, rezar para que Deus tivesse misericórdia, usando como intermediários a Virgem Maria, os santos padroeiros do Império e da Cidade. Procissões foram organizadas, o padroeiro da cidade São Francisco Xavier convocado assim como Senhor do Bonfim, cuja imagem foi transferida da sua igreja para a Catedral Basílica de onde só saiu depois que a epidemia acabou em abril de 1856.

As cidades baianas mais afetadas foram Santo Amaro onde morreram 8.500 pessoas, Cachoeira com 6.200 perdas e Salvador com cerca de 10 mil óbitos. Em termos de proporção, de acordo com o censo de 1855, que registrou 56.000 de habitantes na capital, a epidemia teria ceifado a vida de 18% da população. Mas o governador Moncorvo dizia que os números do censo estavam subestimados e que Salvador teria na verdade cerca de 120 mil habitantes, o que resulta numa taxa de mortalidade de 8% ainda sim um percentual muito grande. Somente 30 anos depois da pandemia, o bacilo do cólera foi identificado pelo médico alemão Robert Koch.

Então, leitores, até em memória das vítimas dessa terrível epidemia de cólera morbus que devastou a Bahia e o Brasil, precisamos contribuir da melhor forma possível para que essa tragédia não se repita.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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