Não é doce morrer no mar

Não é doce morrer no mar

Não, não é doce morrer no mar, como cantou Dorival Caymmi em licença poética transformada numa das músicas mais belas do nosso cancioneiro. Para terraplanistas e culturas do passado, o mar era bem amargo, um elemento apavorante, indomável, lar de seres monstruosos e demoníacos, uma arapuca à espera dos incautos que ousavam desafiá-lo. O medo do mar ficou registrado em inúmeros escritos e obras da literatura universal. Homero, autor de a Ilíada e Odisseia dizia que morrer no mar é coisa dolorosa, abominável e desnaturada.

Foi pelo mar que a peste chegou à Europa. As águas também trouxeram os piratas sarracenos que saquearam várias localidades do Velho Mundo. Através do Atlântico chegaram ao México os conquistadores comandados por Hernán Cortez que dizimaram os astecas, tarefa facilitada porque os nativos consideraram os estrangeiros vindos pelo mar, como mensageiros de deuses. Já para alguns povos africanos o oceano era uma passagem do mundo dos vivos para o além. Assim, quando os portugueses chegaram em certas regiões do continente, os nativos interpretaram que os tripulantes brancos das caravelas eram mortos ressuscitados, vindo do além. Como traziam tecnologia mais avançada que a existente, por exemplo no Congo, os portugueses se passaram por espíritos enviados pelos deuses.

O ciclope Polifemo, o monstro Leviatã, a sereia Circe, entre outras criaturas sobrenaturais, vivem no mar ou em ilhas ameaçando os homens, que procuravam se proteger recorrendo a santos, realizando rituais, fazendo promessas para empreender travessia tão arriscada ou para escapar do perigo. Os navegantes de Nápoles quando lançavam navio ao mar, sacrificavam um carneiro branco e regavam a embarcação com o sangue do animal, cuja pele era colocada na frente da embarcação. A ideia era dar a vida do carneiro para as entidades do mar de forma que os marinheiros fossem poupados.

Berberes do Norte da África, transportavam carneiros a bordo dos seus barcos e quando a tempestade chegava, cortavam um dos bichos ao meio e lançavam uma metade no lado direito do navio e a outra no lado esquerdo. Caso não desse resultado, prosseguiam sacrificando os carneiros.
Na Escócia se desconfiava que feiticeiros e demônios provocavam as tempestades marinhas afogando gatos no mar.

Os terraplanistas e outros supersticiosos sustentavam até o século 15, que o mar acabava na linha do Equador e a partir dali não havia lugares habitados e o terreno era deserto. O medo foi um motivos de atraso nas aventurosas jornadas oceânicas de portugueses e espanhóis.

Nos romances medievais os personagens associavam episódios de tempestades com a presença de pecadores no barco. Até mesmo mulheres grávidas – consideradas impuras – eram culpadas de contaminar navios com suas presenças que atraiam tormentas.

São incontáveis os templos católicos construídos como pagamento a promessas a santos feitas por navegantes que escaparam de tempestades e naufrágios. Em Salvador, os exemplos são a Igreja dos Aflitos e de Bom Jesus dos Navegantes. Esta última, guarda painéis de azulejos com imagens de milagres de Bom Jesus e Nossa Senhora em momentos de aflição dos navegantes que pediram a ajuda dos céus para escapar da fúria do mar. Na bela canção de Caymmi, a letra revela que “o marinheiro bonito/Sereia do mar levou/Ele se foi afogar/Fez sua cama de noivo/No colo de Iemanjá/”. Mas, mesmo assim, insiste: é doce morrer no mar.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

 

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