Imprimir esta página
Uma sociedade cruel e piedosa

Uma sociedade cruel e piedosa

A emotividade do homem medieval se traduziu em atos extremamente cruéis por um lado e surpreendentemente piedosos por outro. Passo a palavra ao historiador holandês Johan Huizinga que, nas suas pesquisas, recolheu uma série desses eventos radicais que revelam um pouco da alma da Idade Média.

Impressionou o historiador a crueldade judicial em certos países e a satisfação do povo em aceitá-la bem como a sua brutalidade e malvadez. A tortura e as execuções eram assistidas pelos espectadores como as diversões de uma feira. "No século XV, os cidadãos da cidade belga de Mons compraram de uma província vizinha, por um alto preço, um salteador condenado à morte para terem a satisfação de o ver ser esquartejado, com o que o povo se divertiu mais do que se um novo corpo santo se tivesse erguido de entre os mortos».

Houve um período em que se negava aos sentenciados o golpe de misericórdia, que eles imploravam, "para que o povo pudesse continuar a deleitar-se com os seus tormentos".

Na França e na Inglaterra existia o costume de recusar a confissão e a extrema-unção a qualquer criminoso condenado à morte. Os sofrimentos e o medo da morte eram agravados com a certeza da condenação às penas eternas. Ou seja, a pessoa não podia nem ter a esperança em um pósvida, ante a perversidade dos seus carrascos.

Huizinga cita a história de um pobre salteador enforcado em Paris em 1427. “No momento em que ele ia ser executado o grande tesoureiro do regente apareceu em cena e exprimiu o seu ódio contra ele; proibiu que se confessasse apesar dos seus rogos; subiu a escada atrás dele, insultou-o, bateu-lhe com uma bengala e espancou o carrasco por exortar a vítima a pensar em salvação”. Essa pressão fez com que o carrasco, amedrontado, apressasse o trabalho. Com isso a corda partiu-se, o pobre malfeitor caiu, quebrou uma perna e as costelas. E, mesmo assim, foi obrigado a subir novamente a escada do cadafalso para ser enforcado.

Na cidade de Paris, em 1425 ocorreu um jogo, certamente criada por alguma mente doentia. Os cidadãos reuniram numa praça quatro mendigos cegos e cada um recebeu um porrete. Junto deles soltaram um porco para que fosse morto a pauladas. Quem conseguisse matar o porco levaria a carcaça que alimentaria o mendigo vencedor por um mês. O resultado dessa competição bizarra foi a cena de quatro mendigos cegos, armados de paus, se espancando uns aos outros na tentativa de matar o porco, tudo para a diversão da turba.

Os exemplos de caridade e piedade também surgiam em meio a toda essa violência. Em Paris, no ano de 1411 o senhor Mansart du Bois, condenado a morte e levado ao local da execução, recebeu apelo de perdão comovido do carrasco que iria executá-lo, pois era o costume nesta época. O condenado não só lhe concedeu o perdão de todo o coração, como ainda pediu que o algoz o abraçasse e os dois choraram copiosamente junto com a multidão que assistia.

Conforme Huizinga talvez, inconscientemente, houvesse um forte e direto sentimento de piedade e de perdão nas pessoas que, de quando em quando, alternavam com a extrema severidade. Em vez de penalidades lenientes, aplicadas com hesitação, a Idade Média só conhecia dois extremos: a inteireza da punição cruel ou o perdão. Isso explica, por exemplo, a comutação de algumas condenações de bruxaria que levariam o suposto culpado à fogueira. “Quando perdoam ao condenado, o problema de ele merecer o perdão por alguma razão especial raramente é posto, porque o perdão tem de ser gratuito, tal como o perdão de Deus”, escreve o historiador, um dos grandes medievalistas que nos deixou uma obra rica em detalhes.

 

WhatsApp Image 2020-03-10 at 19.17.21

Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

Itens relacionados (por tag)