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Os epitáfios de dois artistas geniais

Os epitáfios de dois artistas geniais

Os epitáfios tiveram várias fases ao longo da história. Primeiro começaram sumários e poucos indicavam a identidade das pessoas ou mesmo ano de nascimento e morte. Mas houve um período em que os epitáfios começaram a tagarelar, como classificou o historiador Phillip Ariés. Isso ocorreu a partir do final do século XIV e trago aqui dois exemplos significativos de como a mentalidade de uma época revela-se surpreendente aos dias de hoje. São os epitáfios dos irmãos artistas flamengos Hubert e Jan van Eyck, gênios do seu tempo. Entre as obras dos dois está a famosa pintura do retábulo batizada de “Adoração do Cordeiro Místico”. Hubert, 20 anos mais velho que o irmão Jan morreu em 1426 e para homenageá-lo foi colocada a seguinte inscrição numa placa sobre seu túmulo:

“Vêde em mim vossa imagem, vós que passais sobre minha cabeça. Fui em outro tempo como vós, e agora estou morto e estendido na terra. Nem a prudência, nem a arte, nem a medicina, me serviram. Honra, habilidade, sabedoria, poder, opulência, grandeza, nada respeita a morte. Chamavam-me Hubert van Eyck, era célebre e admirado como um grande pintor, e agora me devoram os vermes. Era algo há poucos dias e agora nada sou. No ano do senhor de 1426 entreguei minha alma a Deus. Rogai por mim os que amais a arte, a fim de que possa lograr Sua graça; fugi do pecado e fazei o bem, para que um dia possais seguir-me”.

O estilo procura passar uma lição de moral às pessoas, mostrando que a vida é efêmera e portanto é melhor seguir o caminho da retidão. Ao mesmo tempo, apela por preces para ajudar na salvação da alma, criando um diálogo entre o defunto e quem lê a inscrição.

O epitáfio de Jan van Eyck, considerado o mais talentoso dos dois irmãos, passa uma ideia de que seu desaparecimento é uma perda irreparável para a humanidade.
“Jaz aqui Jan, célebre por seu mérito, e cujos quadros possuem uma graça maravilhosa; soube pintar formas vivas, a terra carregada de floridas plantas, e animar tudo quando representava.

Venceu a Fídias e a Apeles; Policleto lhe foi inferior. Acusai as parcas cruéis que arrebataram tal homem. Que nosso pranto culpe o destino implacável. Roguemos a Deus que lhe abra o céu”.

Um parêntesis. Os citados Fídias, Apeles e Policleto eram artistas famosos da Grécia antiga. As parcas, na mitologia romana, entidades que controlam o destino dos mortais.

Certamente não foi o próprio Jan van Eyck que bolou seu epitáfio. Sua modéstia, revelada em várias ocasiões, não permitiria. Exemplo disso era como ele costuma assinar suas obras: “Faço o que posso”.

Após esse período de eloquência, os epitáfios ficaram mais sumários pois se entendia que escrever exaltações poderia passar a ideia de vaidade. Dessa nova fase temos um exemplo baiano bem significativo, o epitáfio do senhor de engenho Gabriel Soares de Souza sepultado no final do século XVI no Mosteiro de São Bento de Salvador. Ele mandou escrever em seu túmulo, simplesmente “Aqui jaz um pecador”.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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