O defunto do ano

O defunto do ano

Embora os temas funerários, geralmente provoquem medo, o homem também aprendeu a lidar com a morte de forma debochada em várias culturas ao longo do tempo. Um exemplo dessas brincadeiras está bem viva em Bonfim de Feira, distrito do município de Feira de Santana. Lá nasceu a irreverente cerimônia de despedida do Ano Velho que é representado por um boneco, substituído durante a cerimônia por um morador da localidade, eleito o “defunto do ano”.

Pra representar o personagem, a pessoa precisa entrar num caixão funerário que é conduzido pelas ruas de Bonfim de Feira até a igreja local, tudo acompanhado por ruidoso cortejo com a população se divertindo ao som de música carnavalesca. O ponto alto da festa é quando o defunto do ano sai do caixão e o boneco é recolocado no lugar e o conjunto, então, queimado na praça na maior animação.

A tradição começou em 1972 criada por Vital Souza, que herdou uma funerária do pai. Pra comemorar a passagem do ano, ele resolveu pegar um caixão infestado de cupins, chamou os amigos e todos saíram festejando o réveillon pelas ruas de Bonfim de Feira até queimar o caixão.

Nos anos seguintes a festa evoluiu e um boneco foi colocado no caixão até a ideia de homenagear uma pessoa da comunidade elegendo-o o “defunto do ano”. Aí a festa se tornou cada ano mais animada. Quem quiser conhecer o “A queima do ano velho” pode assistir a última no portal “Meus sertões”

(www.meussertoes.com.br) do jornalista Paulo Oliveira.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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  • Enrolando a Inquisição

    A história do enfrentamento entre o grande pintor veneziano Paolo Veronese e a Inquisição mostra como é possível, com criatividade, driblar a intolerância em qualquer época. Inquisidores não entenderam as razões de Veronese preencher uma versão da Ultima Ceia - pintada para o refeitório do Convento de São João e São Paulo, em Veneza - com personagens alheios à tradicional cena descrita na Bíblia. O artista inseriu um bufão, soldados alemães, um cachorro e um papagaio. Três meses após entregar a encomenda, em 20 de abril de 1573, Veronese foi intimado pelo Santo Ofício e sua inquirição é extremamente esclarecedora sobre a mentalidade de um artista forjado na Renascença.

    Um dos inquisidores pergunta:
    “Qual o significado dessa gente armada e vestida à moda alemã que sustenta uma alabarda [espécie de machado de cabo longo] na mão?”
    E Veronese, sem se abalar, responde:
    “Nós, os pintores, tomamos as licenças que tomam os poetas e os loucos. Eu pintei esses alabardeiros, um bebendo e o outro comendo num degrau, preparados para cumprir seus serviços, pois me pareceu possível que o dono da casa, rico e poderoso tivesse tais servidores”.
    Em vez de 15, como tradicionalmente se convencionou retratar a Santa Ceia, Veronese colocou 50 personagens espalhados no grande átrio onde se realiza o banquete. Ao ser indagado quantos haviam participado do evento, o artista responde:
    “Eu acho que só estiveram Cristo e os Apóstolos, mas quando num quadro sobra espaço, decoro com figuras tais quais imagino”.
    Entre essas “figuras”, estão o bufão com um papagaio no braço, um criado que sangra pelo nariz, um gato, um cachorro, um pintor (que seria o próprio Veronese) e os alabardeiros alemães. Esses últimos são os que mais incomodam a Inquisição, pois na época a Igreja Católica estava em guerra com os estados protestantes que passaram a seguir a doutrina de Martinho Lutero.
    O inquisidor levanta a voz:
    “Parece-lhe conveniente representar na última ceia de Nosso Senhor, povo alemão, ébrios, armas, anões e outros disparates?”
    “Não”, retruca Veronese, ouvindo em seguida uma reprimenda.
    “O senhor não sabe que a Alemanha e outros países contagiados pela heresia têm o costume, em suas pinturas repleta de disparates, de envilecer e ridicularizar os assuntos da Santa Igreja Católica, para ensinar a falsa doutrina aos ignorantes e aos insensatos?”
    E aqui o artista explica que, apesar do risco que correu de contrariar a Igreja Católica não podia “trair” os mestres da Renascença que criaram esse estilo livre de pintar.
    “Convenho que está mal, mas volto a dizer o que disse: é meu dever seguir os exemplos que me deram os meus antepassados. Eu não considerei tantas coisas. Nunca imaginei uma desordem tão grande”.

    Na sentença sobre o caso, a Inquisição exigiu que em três meses Veronese “corrigisse” os erros do painel, mas ele não atendeu. Arrumou uma forma criativa de burlar a determinação. Se as ofensas teriam sido a introdução de personagens numa cena considerada sagrada pela Igreja, por que não transformá-la num outro episódio bíblico, mais popularesco?

    Assim, o artista mudou o quadro para um evento citado no Evangelho de Lucas, a “Ceia na casa de Levi”. O apóstolo Simão virou Levi e Veronese escreveu a legenda embaixo da cena, com a citação “Lucas, capítulo V”. O caso foi esquecido em pouco tempo e o artista não teve mais problemas com o Santo Ofício. Estudiosos da obra de Veronese acham que ele conseguiu se safar com relativa facilidade pelo fato de a Inquisição não ter em Veneza o poder que tinha em Roma. No estado veneziano, os inquisidores só podiam se reunir para um processo e interrogatório na presença de representantes do governo civil.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

  • Não se deve contrariar a quem partiu

    Contrariar os desejos de alguém que partiu para o além era um tabu nos tempos antigos. Acredito que até hoje não é de bom tom deixar de cumprir o que se acerta em vida com as pessoas. Mas, no passado, quando os testamentos passaram a ser verdadeiras apólices de seguro para garantir bom trânsito no mundo espiritual, a coisa era levada muito a sério. Acertava-se, por exemplo, doação de fazendas e casas para ordens religiosas, em troca de missas pela alma e o cumprimento disso era fiscalizado pela própria sociedade. Quando aparecia algum boato de que o testamenteiro – a pessoa nomeada para cumprir as disposições do testamento – não estava agindo como deveria, isso era motivo de escândalo.

    Aqui está um exemplo dessa preocupação. Manoel da Silva Serva, que em 1811 fundou o primeiro jornal da Bahia A Idade do Ouro do Brasil, foi nomeado procurador do administrador do Morgado de Santa Bárbara em Salvador. Era responsável pela execução das ordens deixadas em testamento pelo casal de defuntos – Coronel Francisco Pereira do Lago e Andreza de Araújo. O problema é que o horário indicado pelos dois, pra celebração das missas em favor de suas almas era muito cedo e poucos podiam verificar se isso, de fato, vinha sendo cumprido.

    Começaram os boatos e as maledicências e pra evitar qualquer mancha na sua reputação, Serva pediu uma certidão do testamento ao “Escrivão dos Ofícios das Provedorias das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, Registro Geral dos Testamentos, Apelações e mais Anexos Respectivos da Cidade de Salvador”. Ao receber o documento da repartição de nome quilométrico, Serva o publicou na edição do dia 17 de julho de 1818 do A Idade do Ouro do Brasil.
    A parte mais interessante e esclarecedora é a seguinte: “Serão obrigados a fazer que se digam duas missas cada semana na dita igreja a saber: uma a Nossa Senhora do Rosário ao sábado, pela alma de Andreza de Araújo, e outra ao domingo a Nossa Senhora da Esperança pela alma de Francisco Pereira do Lago, a qual se começara a dizer, antes do dia claro, às horas em que, no Colégio dos Padres da Companhia (de Jesus) se lance as Matinas com as suas obrigações (espirituais)”.

    Ou seja, Serva deixa claro que vinha cumprindo o que determinou o casal de defuntos e, se as pessoas não percebiam a celebração das missas, é porque elas eram celebradas antes do dia amanhecer. Essa é uma das passagens do livro Basílicas e Capelinhas – um estudo sobre a história, arquitetura e arte das igrejas de Salvador, cuja quarta edição em forma de ebook foi lançado na semana passada.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

  • Enfrentando a epidemia com divertimento

    Trago do passado mais alguns exemplos de negacionismo em relação a epidemias e pestes que poderiam ser aplicados tranquilamente nos dias de hoje, ante a teimosia das pessoas em insistir em se aglomerar em eventos públicos. Conta o grande historiador francês Jean Delumeau que houve um tempo, e ele o situa entre os séculos XIV e XVII, que setores importantes da sociedade consideravam que o medo e o abatimento ajudavam a pessoa a se contaminar com as doenças.

    Já mostramos em comentário anterior que as religiões condenavam os fiéis que fugiam das pestes. Mas não eram só os clérigos. Alguns médicos diziam que somente o ar corrompido não teria capacidade de sozinho causar o contágio, ele precisava combinar-se com o “fermento do pavor”. O cirurgião francês Ambroise Paré dizia que nos períodos de epidemia “é preciso manter-se alegre, em boa e pequena companhia e às vezes ouvir cantores e instrumentos musicais”. Será que foi com esse espírito de Paré que milhares de pessoas foram às festas de final de ano nas praias de Pipa e São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, ou em Porto Seguro na Bahia ou vão assistir ao pôr do sol, diariamente, no Farol da Barra?

    Outra autoridade médica do século XVII garantia que era preciso enfrentar as pestes “sem medo, sem temor e sem emoção”, sentenciando que tão somente o pavor desse mal é capaz de provocá-lo em um ar suspeito. Isso porque o coração apavorado fica tão fraco que não resiste ao veneno da epidemia.

    Até no século XX, um estatístico que compilava dados sobre epidemia de cólera na Europa escreveu que as emoções da alma podiam agravar o estado dos doentes e por essa razão a epidemia pode ter se espalhado naquela ocasião pelo excesso de trabalho, os assomos da raiva e sobretudo o medo.

    Essa concepção geral sobre as epidemias levou os magistrados da cidade francesa de Metz, por ocasião de uma peste no século XVII, a ordenar divertimentos públicos a fim de devolver a coragem e o ânimo aos habitantes dizimados pelo contágio. Nos dias de hoje não temos juízes ordenando as pessoas a saírem as ruas para se divertir. No entanto, algumas autoridades conseguem provocar estragos maiores negando o perigo da epidemia de covid.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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