As epidemias e as religiões

As epidemias e as religiões

Religiões rivais em vários momentos da história, o islamismo e o cristianismo adotaram, no passado, atitudes mais ou menos semelhantes quando seus seguidores enfrentavam epidemias como a da covid. Em princípio, interpretavam a causa do infortúnio com castigo divino e seus corifeus religiosos garantiam que Deus não aceitava que os fiéis fugissem da praga ou tivessem medo dela, porque ele saberia quem seria chamado à sua presença.

Martinho Lutero, líder protestante escreveu sobre as epidemias que era preciso suportá-las com paciência, sem temer, pois, na sua interpretação, tratava-se de um decreto divino. Outro líder ia pela mesma linha, alegando que, “se apraz a Deus golpear-nos”, é preciso suportar, porque na sua visão seria tudo para nosso proveito e regeneração.

Nos países muçulmanos se dizia o mesmo, segundo o historiador Jean Delumeou e os sacerdotes insistiam que as vítimas das epidemias morreriam como mártires. Isso se não tentassem fugir do seu destino. É como se morressem combatendo na guerra santa como um guerreiro.

Os líderes viam como única saída pra parar as pestes, fazer penitência, pedir perdão pelos pecados, um fenômeno de culpabilização que atingia grandes massas, principalmente na Europa. Porque o arrependimento individual não servia. Ele teria que ser coletivo. Assim, em várias ocasiões, multidões enfrentaram as epidemias em eventos públicos de penitência. Uma estampa inglesa do século XVII mostra uma multidão, da religião anglicana, reunida em tempo de pandemia na frente da catedral de São Paulo pra escutar um sermão. A legenda da estampa diz “Senhor, tende piedade de nós. Pranto, Jejuns e Preces”.

Jean Delumeou lembra que nos países católicos as autoridades eram obrigadas a organizar manifestações públicas em períodos de epidemias, seguindo o estilo da confissão romana em que a comunidade tranquilizava a si mesma estendendo os braços para o Todo Poderoso. Mesmo sem poder contar com uma medicina eficiente, as pessoas sabiam que o isolamento evitava a propagação das pragas. No entanto, não ousavam desafiar a divindade que, supostamente, enviava as epidemias. Assim, com a ampliação das penitências coletivas pra renovar os pedidos de perdão, o efeito era contrário criando um círculo vicioso interminável. Mais gente nas ruas pedindo perdão, mais mortes.

Em Milão no ano de 1630, quando uma epidemia estava acabando, os fiéis exigiram do arcebispo a organização de uma grande procissão. Mesmo sabendo o perigo do contágio, o arcebispo cedeu e a multidão percorreu as ruas de Milão com um relicário de São Carlos. Uma característica desta procissão é que ela passou pelos bairros parando em todas as encruzilhadas, locais conhecidos pela crença popular onde são realizados os pactos demoníacos. A ideia era exorcizar eventuais demônios que rondavam a cidade e ajudavam a ampliar os estragos da praga daquele ano.

A trágica coincidência desses eventos do passado com os dias de hoje no Brasil é que, uma parte da população, continua desdenhando do isolamento social, participando de eventos públicos de lazer, não de penitência, sem se preocupar com as aglomerações. Mesmo sabendo do grande perigo de contágio da covid e do risco de morte, como ocorria há 600 anos.

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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  • Enrolando a Inquisição

    A história do enfrentamento entre o grande pintor veneziano Paolo Veronese e a Inquisição mostra como é possível, com criatividade, driblar a intolerância em qualquer época. Inquisidores não entenderam as razões de Veronese preencher uma versão da Ultima Ceia - pintada para o refeitório do Convento de São João e São Paulo, em Veneza - com personagens alheios à tradicional cena descrita na Bíblia. O artista inseriu um bufão, soldados alemães, um cachorro e um papagaio. Três meses após entregar a encomenda, em 20 de abril de 1573, Veronese foi intimado pelo Santo Ofício e sua inquirição é extremamente esclarecedora sobre a mentalidade de um artista forjado na Renascença.

    Um dos inquisidores pergunta:
    “Qual o significado dessa gente armada e vestida à moda alemã que sustenta uma alabarda [espécie de machado de cabo longo] na mão?”
    E Veronese, sem se abalar, responde:
    “Nós, os pintores, tomamos as licenças que tomam os poetas e os loucos. Eu pintei esses alabardeiros, um bebendo e o outro comendo num degrau, preparados para cumprir seus serviços, pois me pareceu possível que o dono da casa, rico e poderoso tivesse tais servidores”.
    Em vez de 15, como tradicionalmente se convencionou retratar a Santa Ceia, Veronese colocou 50 personagens espalhados no grande átrio onde se realiza o banquete. Ao ser indagado quantos haviam participado do evento, o artista responde:
    “Eu acho que só estiveram Cristo e os Apóstolos, mas quando num quadro sobra espaço, decoro com figuras tais quais imagino”.
    Entre essas “figuras”, estão o bufão com um papagaio no braço, um criado que sangra pelo nariz, um gato, um cachorro, um pintor (que seria o próprio Veronese) e os alabardeiros alemães. Esses últimos são os que mais incomodam a Inquisição, pois na época a Igreja Católica estava em guerra com os estados protestantes que passaram a seguir a doutrina de Martinho Lutero.
    O inquisidor levanta a voz:
    “Parece-lhe conveniente representar na última ceia de Nosso Senhor, povo alemão, ébrios, armas, anões e outros disparates?”
    “Não”, retruca Veronese, ouvindo em seguida uma reprimenda.
    “O senhor não sabe que a Alemanha e outros países contagiados pela heresia têm o costume, em suas pinturas repleta de disparates, de envilecer e ridicularizar os assuntos da Santa Igreja Católica, para ensinar a falsa doutrina aos ignorantes e aos insensatos?”
    E aqui o artista explica que, apesar do risco que correu de contrariar a Igreja Católica não podia “trair” os mestres da Renascença que criaram esse estilo livre de pintar.
    “Convenho que está mal, mas volto a dizer o que disse: é meu dever seguir os exemplos que me deram os meus antepassados. Eu não considerei tantas coisas. Nunca imaginei uma desordem tão grande”.

    Na sentença sobre o caso, a Inquisição exigiu que em três meses Veronese “corrigisse” os erros do painel, mas ele não atendeu. Arrumou uma forma criativa de burlar a determinação. Se as ofensas teriam sido a introdução de personagens numa cena considerada sagrada pela Igreja, por que não transformá-la num outro episódio bíblico, mais popularesco?

    Assim, o artista mudou o quadro para um evento citado no Evangelho de Lucas, a “Ceia na casa de Levi”. O apóstolo Simão virou Levi e Veronese escreveu a legenda embaixo da cena, com a citação “Lucas, capítulo V”. O caso foi esquecido em pouco tempo e o artista não teve mais problemas com o Santo Ofício. Estudiosos da obra de Veronese acham que ele conseguiu se safar com relativa facilidade pelo fato de a Inquisição não ter em Veneza o poder que tinha em Roma. No estado veneziano, os inquisidores só podiam se reunir para um processo e interrogatório na presença de representantes do governo civil.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

  • Enfrentando a epidemia com divertimento

    Trago do passado mais alguns exemplos de negacionismo em relação a epidemias e pestes que poderiam ser aplicados tranquilamente nos dias de hoje, ante a teimosia das pessoas em insistir em se aglomerar em eventos públicos. Conta o grande historiador francês Jean Delumeau que houve um tempo, e ele o situa entre os séculos XIV e XVII, que setores importantes da sociedade consideravam que o medo e o abatimento ajudavam a pessoa a se contaminar com as doenças.

    Já mostramos em comentário anterior que as religiões condenavam os fiéis que fugiam das pestes. Mas não eram só os clérigos. Alguns médicos diziam que somente o ar corrompido não teria capacidade de sozinho causar o contágio, ele precisava combinar-se com o “fermento do pavor”. O cirurgião francês Ambroise Paré dizia que nos períodos de epidemia “é preciso manter-se alegre, em boa e pequena companhia e às vezes ouvir cantores e instrumentos musicais”. Será que foi com esse espírito de Paré que milhares de pessoas foram às festas de final de ano nas praias de Pipa e São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, ou em Porto Seguro na Bahia ou vão assistir ao pôr do sol, diariamente, no Farol da Barra?

    Outra autoridade médica do século XVII garantia que era preciso enfrentar as pestes “sem medo, sem temor e sem emoção”, sentenciando que tão somente o pavor desse mal é capaz de provocá-lo em um ar suspeito. Isso porque o coração apavorado fica tão fraco que não resiste ao veneno da epidemia.

    Até no século XX, um estatístico que compilava dados sobre epidemia de cólera na Europa escreveu que as emoções da alma podiam agravar o estado dos doentes e por essa razão a epidemia pode ter se espalhado naquela ocasião pelo excesso de trabalho, os assomos da raiva e sobretudo o medo.

    Essa concepção geral sobre as epidemias levou os magistrados da cidade francesa de Metz, por ocasião de uma peste no século XVII, a ordenar divertimentos públicos a fim de devolver a coragem e o ânimo aos habitantes dizimados pelo contágio. Nos dias de hoje não temos juízes ordenando as pessoas a saírem as ruas para se divertir. No entanto, algumas autoridades conseguem provocar estragos maiores negando o perigo da epidemia de covid.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

  • Os deuses devem estar loucos

    Aviso que esse artigo contém spoiler. É que revi, recentemente, o filme “Os deuses devem estar loucos”, (por sinal título apropriado para os dias de hoje) e a história se assemelha ao fenômeno do “culto à carga”, quando, depois da Segunda Guerra Mundial, nativos que viviam isolados, na região da Nova Guiné, ao tomar conhecimento das geringonças de colonizadores europeus, são atingidos pela maldição segundo a qual “qualquer tecnologia avançada o bastante é indistinguível da magia”. Ou seja, os ilhéus achavam que os equipamentos mecânicos e eletrônicos dos estrangeiros eram produzidos e enviados por deuses, em forma de carga, e tentam repetir os hábitos dos colonizadores pra também obterem o mesmo material.

    Pois bem no filme “Os deuses devem estar loucos” uma garrafa de vidro vazia de Coca Cola é descartada pelo piloto mal-educado de um pequeno avião que sobrevoava a reserva de uma tribo africana, isolada do mundo. Como os nativos da Nova Guiné, esses indivíduos nunca tinham entrado em contato com um objeto manufaturado como aquele, de formato cilíndrico, transparente e duro. Acharam que a garrafa era um presente dos deuses e logo perceberam que poderia ser usada para várias utilidades manuais (amassar raízes, esticar couro de cobra e outros).

    O objeto passa a ser cultuado e cria uma dependência para os integrantes da tribo, que sempre dividiram tudo, mas não podiam dividir o presente divino. Aí começam os desentendimentos e a garrafa chega a ser usada como arma para um garoto bater na cabeça de outro.

    Após várias desavenças causadas pelo objeto, o líder da tribo conclui, com os mais velhos, que aquilo era uma “coisa má”, que fora mandada pelos deuses para testá-los, episódio recorrente nos livros sagrados de várias religiões. O líder resolve, então, devolver o presente aos deuses, e para isso era preciso jogá-lo no buraco do fim do mundo, local desconhecido, que ele vai procurar numa jornada ao mundo exterior. Uma alegoria extraordinariamente bem-feita sobre os malefícios que o mundo civilizado provocou nas tribos primitivas e o tremendo choque cultural entre os povos.

    O problema da história começa aí, pois o autor resolveu colocar o líder da tribo em contato com pessoas “civilizadas” e o filme se transforma numa comédia-pastelão, embora não perca a mensagem antropológica do choque de culturas e da criação das religiões e seus dogmas. Outro filme que mostra como a criação de um mito pode surgir de uma coisa simples é “A vida de Brian”, do grupo de humoristas ingleses Monty Python. É sobre um personagem que nasceu numa manjedoura vizinha à de Jesus e, ao longo da vida, é confundido com o messias. Há uma sequência em que, tentando escapar de um grupo de pessoas que o cultua como o Salvador, Brain deixa cair uma cabaça e perde uma sandália. Os devotos acreditam que o messias forneceu dois sinais divinos. Então, um grupo funda a ala dos seguidores da cabaça e outro, de adeptos da sandália. E, assim, começa a primeira cisão da nova religião. Pra saber mais, fica a sugestão dos dois filmes, Os deuses devem estar loucos e A vida de Brian.

     

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    Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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