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Os deuses devem estar loucos

Os deuses devem estar loucos

Aviso que esse artigo contém spoiler. É que revi, recentemente, o filme “Os deuses devem estar loucos”, (por sinal título apropriado para os dias de hoje) e a história se assemelha ao fenômeno do “culto à carga”, quando, depois da Segunda Guerra Mundial, nativos que viviam isolados, na região da Nova Guiné, ao tomar conhecimento das geringonças de colonizadores europeus, são atingidos pela maldição segundo a qual “qualquer tecnologia avançada o bastante é indistinguível da magia”. Ou seja, os ilhéus achavam que os equipamentos mecânicos e eletrônicos dos estrangeiros eram produzidos e enviados por deuses, em forma de carga, e tentam repetir os hábitos dos colonizadores pra também obterem o mesmo material.

Pois bem no filme “Os deuses devem estar loucos” uma garrafa de vidro vazia de Coca Cola é descartada pelo piloto mal-educado de um pequeno avião que sobrevoava a reserva de uma tribo africana, isolada do mundo. Como os nativos da Nova Guiné, esses indivíduos nunca tinham entrado em contato com um objeto manufaturado como aquele, de formato cilíndrico, transparente e duro. Acharam que a garrafa era um presente dos deuses e logo perceberam que poderia ser usada para várias utilidades manuais (amassar raízes, esticar couro de cobra e outros).

O objeto passa a ser cultuado e cria uma dependência para os integrantes da tribo, que sempre dividiram tudo, mas não podiam dividir o presente divino. Aí começam os desentendimentos e a garrafa chega a ser usada como arma para um garoto bater na cabeça de outro.

Após várias desavenças causadas pelo objeto, o líder da tribo conclui, com os mais velhos, que aquilo era uma “coisa má”, que fora mandada pelos deuses para testá-los, episódio recorrente nos livros sagrados de várias religiões. O líder resolve, então, devolver o presente aos deuses, e para isso era preciso jogá-lo no buraco do fim do mundo, local desconhecido, que ele vai procurar numa jornada ao mundo exterior. Uma alegoria extraordinariamente bem-feita sobre os malefícios que o mundo civilizado provocou nas tribos primitivas e o tremendo choque cultural entre os povos.

O problema da história começa aí, pois o autor resolveu colocar o líder da tribo em contato com pessoas “civilizadas” e o filme se transforma numa comédia-pastelão, embora não perca a mensagem antropológica do choque de culturas e da criação das religiões e seus dogmas. Outro filme que mostra como a criação de um mito pode surgir de uma coisa simples é “A vida de Brian”, do grupo de humoristas ingleses Monty Python. É sobre um personagem que nasceu numa manjedoura vizinha à de Jesus e, ao longo da vida, é confundido com o messias. Há uma sequência em que, tentando escapar de um grupo de pessoas que o cultua como o Salvador, Brain deixa cair uma cabaça e perde uma sandália. Os devotos acreditam que o messias forneceu dois sinais divinos. Então, um grupo funda a ala dos seguidores da cabaça e outro, de adeptos da sandália. E, assim, começa a primeira cisão da nova religião. Pra saber mais, fica a sugestão dos dois filmes, Os deuses devem estar loucos e A vida de Brian.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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