Imprimir esta página
Enrolando a Inquisição

Enrolando a Inquisição

A história do enfrentamento entre o grande pintor veneziano Paolo Veronese e a Inquisição mostra como é possível, com criatividade, driblar a intolerância em qualquer época. Inquisidores não entenderam as razões de Veronese preencher uma versão da Ultima Ceia - pintada para o refeitório do Convento de São João e São Paulo, em Veneza - com personagens alheios à tradicional cena descrita na Bíblia. O artista inseriu um bufão, soldados alemães, um cachorro e um papagaio. Três meses após entregar a encomenda, em 20 de abril de 1573, Veronese foi intimado pelo Santo Ofício e sua inquirição é extremamente esclarecedora sobre a mentalidade de um artista forjado na Renascença.

Um dos inquisidores pergunta:
“Qual o significado dessa gente armada e vestida à moda alemã que sustenta uma alabarda [espécie de machado de cabo longo] na mão?”
E Veronese, sem se abalar, responde:
“Nós, os pintores, tomamos as licenças que tomam os poetas e os loucos. Eu pintei esses alabardeiros, um bebendo e o outro comendo num degrau, preparados para cumprir seus serviços, pois me pareceu possível que o dono da casa, rico e poderoso tivesse tais servidores”.
Em vez de 15, como tradicionalmente se convencionou retratar a Santa Ceia, Veronese colocou 50 personagens espalhados no grande átrio onde se realiza o banquete. Ao ser indagado quantos haviam participado do evento, o artista responde:
“Eu acho que só estiveram Cristo e os Apóstolos, mas quando num quadro sobra espaço, decoro com figuras tais quais imagino”.
Entre essas “figuras”, estão o bufão com um papagaio no braço, um criado que sangra pelo nariz, um gato, um cachorro, um pintor (que seria o próprio Veronese) e os alabardeiros alemães. Esses últimos são os que mais incomodam a Inquisição, pois na época a Igreja Católica estava em guerra com os estados protestantes que passaram a seguir a doutrina de Martinho Lutero.
O inquisidor levanta a voz:
“Parece-lhe conveniente representar na última ceia de Nosso Senhor, povo alemão, ébrios, armas, anões e outros disparates?”
“Não”, retruca Veronese, ouvindo em seguida uma reprimenda.
“O senhor não sabe que a Alemanha e outros países contagiados pela heresia têm o costume, em suas pinturas repleta de disparates, de envilecer e ridicularizar os assuntos da Santa Igreja Católica, para ensinar a falsa doutrina aos ignorantes e aos insensatos?”
E aqui o artista explica que, apesar do risco que correu de contrariar a Igreja Católica não podia “trair” os mestres da Renascença que criaram esse estilo livre de pintar.
“Convenho que está mal, mas volto a dizer o que disse: é meu dever seguir os exemplos que me deram os meus antepassados. Eu não considerei tantas coisas. Nunca imaginei uma desordem tão grande”.

Na sentença sobre o caso, a Inquisição exigiu que em três meses Veronese “corrigisse” os erros do painel, mas ele não atendeu. Arrumou uma forma criativa de burlar a determinação. Se as ofensas teriam sido a introdução de personagens numa cena considerada sagrada pela Igreja, por que não transformá-la num outro episódio bíblico, mais popularesco?

Assim, o artista mudou o quadro para um evento citado no Evangelho de Lucas, a “Ceia na casa de Levi”. O apóstolo Simão virou Levi e Veronese escreveu a legenda embaixo da cena, com a citação “Lucas, capítulo V”. O caso foi esquecido em pouco tempo e o artista não teve mais problemas com o Santo Ofício. Estudiosos da obra de Veronese acham que ele conseguiu se safar com relativa facilidade pelo fato de a Inquisição não ter em Veneza o poder que tinha em Roma. No estado veneziano, os inquisidores só podiam se reunir para um processo e interrogatório na presença de representantes do governo civil.

 

WhatsApp Image 2020-03-10 at 19.17.21

Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

Itens relacionados (por tag)