Médico com coronavírus teve contato com pelo menos 90 pessoas no Litoral Norte

Médico com coronavírus teve contato com pelo menos 90 pessoas no Litoral Norte

Tinha gente nas praças, nas quadras de esporte e nos bares. Neste domingo (22), parecia que muita gente não estava compreendendo que a recomendação, em todo o estado, era para que as pessoas evitassem sair de casa devido à pandemia do coronavírus. A rua estava movimentada, em Entre Rios, município no Litoral Norte baiano com pouco mais de 41 mil habitantes.

Até que, nas primeiras horas da tarde de domingo, uma notícia veio como uma bomba: um médico que atende na cidade, além de outros municípios da região, foi diagnosticado com o vírus da Covid-19. Em poucos minutos, a história se espalhou. Nos grupos de Whatsapp, áudios de autoridades locais e até mesmo de uma ligação feita pelo governador Rui Costa para tomar providências sobre o assunto viralizaram.

“As pessoas não estavam acreditando. Depois disso, quem estava na rua foi para casa, quem estava nas quadras também. Foi algo desesperador, da gente chorar e entrar em pânico. Hoje (nesta segunda, 23), acordei com sensação de medo, até porque tudo na cidade fechou”, conta Petra*, 45 anos, moradora de Entre Rios há 15 anos.

O médico era o ginecologista e obstetra Eduardo Santana Ribeiro, que atua fazendo ultrassonografias. Recém-chegado dos Estados Unidos no dia 8 de março, ele voltou a atender no dia 11. De lá até a última quarta-feira (18), atendeu pacientes de Acajutiba, Cardeal da Silva, Catu, Esplanada e da própria Entre Rios.

O CORREIO apurou que ele teve contato com pelo menos 90 pessoas até manifestar sintomas da doença, durante o atendimento em Entre Rios. O número total, porém, pode ser muito maior, já que três cidades não divulgaram a quantidade. Só em Catu foram 55 pessoas, de acordo com a assessoria da prefeitura da cidade. A lista inclui até mesmo a secretária de Saúde do município, hoje em isolamento.

Já em Entre Rios, apenas no dia 18 foram 38 pessoas, entre pacientes atendidos e funcionários da clínica particular onde ele trabalhava. Ao perceber os sintomas de resfriado, o médico interrompeu o atendimento e foi embora. No entanto, de acordo com a secretária da Saúde de Entre Rios, Michele Monteiro, o número de pessoas com quem o profissional teve contato na cidade é maior: a prefeitura ainda estava levantando a lista daqueles que foram atendidos no dia 11, o plantão semanal anterior.

A situação tomou contornos tão dramáticos que, no início da tarde desta segunda-feira (23), o governador Rui Costa afirmou, em entrevista à TVE, que o estado vai processar o médico. No início da manhã, o governo já tinha anunciado que estava mobilizado com as autoridades de cada cidade para identificar e localizar todos os pacientes atendidos pelo médico, além de outras pessoas que eventualmente tiveram contato com ele, a exemplo de funcionários das clínicas. Por telefone, o governador já tinha falado com os gestores municipais para que todos fossem colocados em quarentena.

Atendimento interrompido
O médico Eduardo Santana Ribeiro é uma figura conhecida em Entre Rios e nas cidades vizinhas. Há anos, atende na região. Chegou a trabalhar na rede municipal, até novembro do ano passado, e a ser diretor médico e sócio de uma clínica em Porto Sauípe, uma das localidades da cidade. Em abril, deveria voltar ao quadro de funcionários do município, segundo a secretária Michele Monteiro.

Mas, nos últimos tempos, trabalhava na clínica particular RCS às quartas-feiras. Foi lá que esteve no dia 11, pouco depois de retornar de um viagem de nove dias aos Estados Unidos. No dia seguinte, 12, deu plantão em Catu, onde esteve em contato com 55 pessoas. Na sequência, atuou em Acajutiba, Esplanada e Cardeal da Silva.

Na última quarta-feira, 18, esteve novamente em Entre Rios. Só nesse dia, foram identificadas 38 pessoas que tiveram contato com o profissional. No entanto, de acordo com a secretária Michele Monteiro, de Entre Rios, o número foi menor do que os atendidos no dia 11, justamente porque Eduardo começou a apresentar sintomas da Covid-19.

"Ele estava em atendimento e passou mal. Por isso, levantou, deixou os atendimentos e foi embora. Ainda estamos aguardando a clínica liberar a lista do dia 11 porque o contingente de pessoas foi maior", explica a secretária.

O acesso à lista dos pacientes foi uma das primeiras dificuldades. Ainda no domingo, o áudio de uma conversa telefônica gravada entre a secretária Michele e o governador Rui Costa foi vazado e viralizou. Na gravação, é possível escutar a secretária afirmando que a clínica estava dificultando o acesso aos nomes, através do advogado que os representava.

"Avise a ele (o advogado) que se ele não fornecer a relação agora, eu vou mandar a vigilância sanitária fechar a clínica hoje. Pode ligar e dizer que o governador mandou avisar que vai fazer requisição administrativa da clínica hoje se você não fornecer a relação de quem foi atendido”, responde Rui, na conversa.

O CORREIO apurou que a conversa é verdadeira.

Segundo a prefeitura, o perfil dos pacientes na lista é variado: há de idosos a crianças, passando por adolescentes e gestantes.

Declaração
Em uma nota divulgada nesta segunda-feira, o médico Eduardo Ribeiro informou que viajou aos Estados Unidos entre 29 de fevereiro e 8 de março, ressaltando que foi antes da declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De fato, a declaração oficial só foi feita no dia 11 de março.

“Ocorre que, não tendo apresentado nenhum sintoma descritivo na cartilha da OMS e não tendo entrado em contato, de modo consciente, com alguém testado positivo, continuou com sua atividade de trabalho, com a anuência das prefeituras sob a qual (sic) estavam cientes da viagem feita pelo médico”, diz a nota.

No comunicado, o médico e seu advogado destacam que a determinação de isolamento devido a viagens internacionais por parte do Ministério da Saúde só aconteceu no dia 13 de março, quando ainda não havia manifestado nenhum sintoma.

“Entretanto, no dia 18.03.2020, o médico sentiu um leve sintoma de resfriado, interrompendo imediatamente o seu labor e se encaminhando a um Hospital de Salvador, tendo sido colhida pesquisa de Covid-19 e, após, liberado, ante seu quadro, para cumprir quarentena em casa. Este recebeu um atestado médico para 14 dias. Portanto, é caluniosa a afirmação de que o médico em contento laborou, com consciência, infectado”, completam.


No site do Cremeb, é possível conferir a inscrição do médico na entidade (Foto: Reprodução/Cremeb)
Em seu perfil no Instagram, até a manhã desta segunda, Eduardo ainda colocava o endereço eletrônico de uma clínica particular em Porto Sauípe. No site do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), ele ainda é citado como diretor técnico da unidade.

No entanto, procurado pelo CORREIO, um dos sócios da clínica afirmou que o médico não atende mais na clínica há mais de um ano. Em janeiro, quando entrou de férias, ele teria, inclusive, pedido para não responder mais como diretor. Assim, nos últimos dias, não teria feito atendimento nesse local.

Sem se identificar, um morador de Porto Sauípe confirmou que o médico não vinha atendendo no local. “A clínica funciona, mas com outros médicos”, diz. Na localidade, mais afastada do centro da cidade, o clima estava mais tranquilo. “Como aqui ainda não tem caso nenhum, não tem pânico. Mas o pessoal está dentro de casa”.

Pânico na cidade
Desde domingo, a prefeitura de Entre Rios tomou medidas para conter o avanço da transmissão na cidade. Até o fim de manhã desta segunda, todas as 38 pessoas tinham sido localizadas.

“A gente está ligando, procurando saber os sintomas, o quadro clínico e orientando sobre a quarentena. Graças a Deus, não identificamos ninguém com estado grave. Tem muita gente assintomática e algumas poucas pessoas com sintomas leves, mas todas orientadas a ficar em quarentena”, afirmou a secretária municipal Michele Oliveira.

A partir desta segunda-feira, todo o comércio da cidade foi fechado - apenas serviços essenciais, como mercados, farmácias e apenas um posto de gasolina. Além disso, a vigilância sanitária e a Polícia Militar estão fazendo o chamado bloqueio sanitário nas estradas que dão acesso à cidade. “A gente está com a polícia vendo a temperatura, conversando para a pessoa e fazendo perguntas, vendo para onde vai. Quem não é do município, a gente orienta a não circular”.

Entre os moradores, a expectativa é ver como serão os próximos dias. O gerente do Hotel Branco, Roque Lima, confirmou que a entrada da cidade estava fechada. “A gente aqui no hotel está trabalhando só na parte administrativa. O policiamento estava na entrada da cidade parando os carros, vendo a febre e orientando, fazendo o trabalho deles”.

Também morador da cidade, Timóteo*, 39, contou que, desde o domingo, muitos moradores entraram em pânico. Por algum tempo, esperavam que demorava um pouco até que os casos chegassem até lá.

“Como a gente está distante de aeroportos, a gente imaginava que quem está no interior não teria esse contato logo no início por irresponsabilidade de um profissional da área de saúde”, critica.

Ele pontua que, ao contrário de cidades maiores, um município como Entre Rios não tem a estrutura de uma grande rede de saúde, com grandes hospitais. “Aqui a gente tem pronto-socorro, que não faz exames. Houve um pânico, um terror. Pessoas idosas mandando áudios nos grupos, clamando por Deus. A gente está na quaresma e eu me senti como no fim do mundo, uma coisa de apocalipse zumbi”, narra.

Moradora da cidade há 24 anos, a gerente do Hotel Rio Center, Naria Pereira, 47, contou que o estabelecimento tem funcionado com as medidas de proteção. Mesmo assim, todo o comércio fechou, deixando os moradores mais alarmados.

“O pessoal está preocupado porque a gente mora no interior. Nas grandes capitais, já não tem recurso. Imagine a gente no interior? É difícil, minha amiga, é difícil, ainda mais que eu moro com um filho cardíaco e um neto de um ano”, desabafa a gerente.

A moradora Petra, do começo deste texto, contou que a prima de uma amiga esteve entre os pacientes atendidos pelo médico no dia 18. A paciente teve contato, logo após a consulta, com a prima e o filho dela.

"Minha colega está nervosa, ficou desesperada e o pessoal tentando acalmar. Tem outra colega minha que estava agradecendo porque marcou consulta para esse dia e dinheiro não saiu. Ela acha agora que foi um livramento", diz.

Mesmo assim, o pânico na cidade se estende a outros estabelecimentos onde ele teria ido, como um restaurante e um posto de gasolina.

"Conheço também gente que trabalha na clínica, mas está todo mundo calado. Nos grupos (de Whatsapp), ninguém fala nada. Só visualizam e não comentam. O comentário na cidade é que ele é um excelente médico, por isso ninguém entendeu nada".

Em nota, a Policlínica RCS, onde Eduardo atendeu, afirmou que o médico não teria informado sobre ter sintomas compatíveis com o coronavírus e que todos os protocolos de segurança foram respeitados. A clínica se colocou à disposição para atender a população e informou que, até o momento, nenhum outro funcionário apresentou sintomas.

Outros municípios
Já em Catu, a prefeitura informou que já notificou todas as 55 pessoas que tiveram contato com o médico. Segundo a assessoria da administração municipal, todas já estão em isolamento e, até o momento, assintomáticas. Ao contrário de Entre Rios, em Catu, o médico trabalha na rede pública municipal.

Nesta segunda, o Ministério Público do Estado (MPE) notificou a prefeitura, através de ofício, a prestar informações sobre as medidas adotadas em relação ao médico que atendeu pacientes no município e foi diagnosticado com a Covid-19, em até 48 horas.

A prefeitura informou que publicou um decreto restringindo o funcionamento do comércio na cidade. Pelos próximos oito dias, apenas poderão funcionar farmácias, postos de gasolina, hotéis, supermercados, padarias, estabelecimentos que vendam alimentos para animais, estabelecimentos de venda de gás de cozinha, açougues, lojas de produtos de limpeza, oficinas mecânicas, empresas de manutenção de equipamentos de informática e borracharias. O atendimento presencial ao público na prefeitura também foi suspenso, assim como velórios devem ficar restritos apenas aos familiares.

Procuradas, as prefeituras de Acajutiba, Cardeal da Silva e Esplanada não foram localizadas. No entanto, em suas páginas em redes sociais, a prefeitura de Acajutiba publicou que todos os que tiveram contato com o médico devem permanecer em quarentena. Além disso, a vigilância epidemiológica deverá entrar em contato com os pacientes.

Profissionais de saúde
O Cremeb intermediou o contato da Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) com o médico, já que o órgão estadual informou que não estava conseguindo localizá-lo.

"Sobre a falta de contato alegado pela Sesab, o médico justificou que não tem conseguido dar conta do grande volume de chamadas telefônicas que tem recebido. Porém, o mesmo se colocou à disposição das autoridades sanitárias", informou o Cremeb, em nota.

No mesmo comunicado, a entidade destacou, ainda, que "infelizmente, , muitos médicos e profissionais de saúde serão infectados pela Covid-19". Por isso, o Cremeb reforçou a importância do isolamento social, bem como do uso de equipamentos de proteção individual.

O Cremeb também informou que não recebeu nenhuma comunicação - seja do governo do estado, seja das autoridades sanitárias - sugerindo a investigação de alguma infração que eventualmente poderia ter sido cometida pelo profissional e aguarda mais informações. No entanto, mesmo assim, se a entidade avaliar que houve indício de infração ética, pode abrir uma investigação.

*Nomes fictícios

Fonte: Correio*

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