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Oeste baiano é palco de disputas, trabalho análogo à escravidão e grilagem de terra

Oeste baiano é palco de disputas, trabalho análogo à escravidão e grilagem de terra

Em carta aberta ao governo do estado, 56 associações de geraizeiros - descendentes de indígenas e quilombolas que moram no Cerrado - da cidade de Formosa do Rio Preto, no oeste da Bahia, pedem socorro às autoridades baianas pelo desmatamento de terra na região. Elas solicitam a revogação da autorização dada à empresa Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo, conhecida como Fazenda Estrondo, em 22 de maio de 2019, que legaliza o desmatamento no local.

Segundo o documento, a Fazenda Estrondo nunca conseguiu demonstrar a regularidade fundiária de sua posse e está, ilegalmente, na Reserva Legal dos territórios tradicionais dos geraizeiros, que vivem de forma sustentável do Cerrado. O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, novamente, em junho de 2021, após vários recursos, que os geraizeiros são os donos daquela terra. Porém, a Estrondo segue na área com seguranças armados, que já balearam três pessoas da comunidade.

A carta ainda aponta que a empresa pretende desmatar mais de 24 mil hectares de terra, área maior que a cidade do Recife, capital de Pernambuco. Pelas imagens obtidas da Plataforma MapBiomas, 3 mil hectares já foram desmatados, até o dia 17 de agosto de 2021. A Fazenda Estrondo é tida como um dos maiores casos de grilagem verde do Brasil, segundo o Livro Branco da Grilagem de Terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1999, com 444.306 hectares registrados. A ocupação das terras data do final do governo militar, em 1982.

As associações exigem que o Inema revogue as Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV) dada à empresa e que o Instutito realize, com urgência, uma visita in loco, para registrar e averiguar a denúncia, assim como notificar a empresa do desmatamento iniciado. A carta foi enviada à Secretaria do Meio Ambiente (Sema), ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e à Coordenadora Executiva da Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Bahia, que regula a questão fundiária no estado, no dia 1 de setembro, mas, até hoje, não teve resposta.

Sem apoio
O presidente da Associação Comunitária da Comunidade Geraizeira de Cachoeira, morador Jossone Leite, que é vizinho da Fazenda Estrondo, diz que desde 1994 que o grupo se estabelece de forma ativa na região. “Eles começaram, desde então, a desmatar e foram avançando cada vez mais. Já não tem mais Cerrado. A gente já fez contato com o Inema, cobramos não sei quantas vezes, mas disseram que está tudo legal. E a gente fica aqui sem receber apoio”, narra Leite.

De acordo com o morador, o conflito entre eles está mais calmo. Porém, ele espera ter a terra de volta, direito reconhecido pelo STJ. “O Cerrado é tudo para a gente, representa nossa vida, a gente depende dele para sobreviver. Se acabar com ele, a gente não tem fonte de renda”, esclarece Leite. As famílias que moram ali vivem de subsistência e vendem o excedente, como frutas e criação de gado.

Quase 2 mil campos de futebol desmatados por mês
Informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que quase 103 milhões de hectares do Cerrado foram desmatados, no Brasil, até 2020. Na Bahia, foram mais de 6 milhões de hectares. Ou seja, o desmatamento no território baiano corresponde a 5,8% do desflorestamento nacional. Ainda não há dados sobre o desmatamento em 2021.

No caso de Formosa do Rio Preto, são 33 mil hectares desmatados, entre maio de 2019, quando a Fazenda Estrondo recebe a ASV do Inema, e dezembro de 2020. Isso dá uma média de 1.941 campos de futebol desmatados por mês. Os números são do sistema de Dados utilizados no programa de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Inpe. Segundo o instituto, a região vem sendo monitorada desde 2018.

Perda da biodiversidade
Considerado a savana brasileira, o Cerrado é o bioma mais biodiverso do planeta, de acordo com o presidente e fundador da Organização sem Fins Lucrativos (ONG) Save Cerrado, Paulo Bellonia. A ONG atua na recuperação e preservação de áreas críticas desse ecossistema. O pesquisador e ativista diz que, a cada 40 segundos, o equivalente a um campo de futebol foi desmatado no Cerrado, no Brasil, em 2020. Isso o torna o bioma o mais desmatado do país, proporcionalmente.

“É considerado um hotspot mundial, que são áreas com alta concentração de biodiversidade e ameaçadas de extinção. Para se ter uma ideia do tamanho da ameaça, somente 2,3% da área do planeta é considerada hotspot, e essas áreas detém 60% da biodiversidade terrestre. São diversos conteúdos demonstrando, internacionalmente, a preocupação e atenção com o Cerrado no Brasil”, afirma Bellonia.

O biólogo Domingos Cardoso, doutor em botânica e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que esteve na Fazenda Estrondo, em 2009, demonstra-se inconformado com a situação. “Além da diversidade de plantas, pudemos coletar espécies novas, que nunca tinham sido coletadas. Infelizmente, o nível de destruição do Cerrado na Bahia chegou a números alarmantes. Se eu voltasse hoje, não veria a mesma exuberância”, conta.

O pesquisador ressalta que a importância do Cerrado vai além da fauna e flora. “As pessoas não têm consciência, pensam que, por ser vegetação baixa e não serem árvores grandes, já está destruído. Mas o Cerrado tem valores imensos, é um grande reservatório, de onde sai um monte de nascente, que irriga bacias. É muito mais frágil e perigoso para a sustentabilidade, ainda mais nesse contexto de crise hídrica”, esclarece. Segundo ele, a Amazônia tem 11.903 espécies de plantas com flores. Já o cerrado, que tem área bem menor, tem 12.025.

Multa e trabalho análogo à escravidão
Uma das 14 empresas donas da Fazenda Estrondo, a Companhia Melhoramentos do Oeste da Bahia (CMOB), já foi inclusive multada no valor de mais de R$ 25 milhões pelo Inema por desmatamento ilegal, em 2014. O documento indica que a empresa desmatou, a corte raso, mais de 25 mil hectares de vegetação nativa do Cerrado, fora de reserva legal, sem autorização do órgão ambiental competente.

Outra polêmica envolvendo a Fazenda foi, em 2005, quando uma operação do Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou 91 trabalhadores em condições análogas à escravidão em duas fazendas da Estrondo, a Indiana e a Austrália. Na primeira, 52 pessoas colhiam algodão em condições precárias. Na segunda, 39 funcionários recebiam R$ 60 por mês na produção de soja.

Além das 14 empresas, existem 41 arrendatários da Estrondo, segundo o site da cooperativa. Dentre eles, investidores até do Japão. A produção da fazenda é dividida em nove sedes, fabricantes de milho, soja e algodão.

O que dizem os órgãos oficiais
A Secretaria do Meio Ambiente da Bahia (Sema) informou que a responsabilidade de responder às perguntas do CORREIO é do Inema. O Inema teve mais de 30 dias para responder, mas não se posicionou, assim como a prefeitura de Formosa do Rio Preto.

A Procuradoria Geral do Estado (PGE) disse nunca ter concedido direito à terra a empresas e tampouco ajudou-as a conseguirem as ASVs, porque não tem competência para tal. A PGE acrescentou ainda que moveu uma ação discriminatória para que a área ocupada pela Estrondo se constitua como “terras devolutas estaduais”.

O órgão ainda reiterou que “respeita a decisão judicial que reconheceu a posse das comunidades geraizeiras e, juntamente com os Ministérios Públicos Estadual e Federal, está trabalhando para uma solução consensual do conflito existente entre as comunidades geraizeiras e o Condomínio Estrondo, com a manutenção das comunidades em suas posses tradicionais”, conclui.

O STJ disse que o processo ainda não transitou em julgado e que o agravo de instrumento, requerido por duas empresas da Estrondo, a Colina Paulista e a Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário, está com recurso pendente de julgamento.

“Encontra-se concluso ao relator, ainda sem data prevista de julgamento”, declarou o órgão, pela assessoria de imprensa. Sobre as perguntas, o tribunal respondeu que “o Judiciário age conforme provocado. Não cabe à assessoria de imprensa do STJ analisar cenários e confrontá-los com decisões que tenham sido proferidas pelo Tribunal”, acrescenta.

As partes
O advogado Maurício Correia, coordenador executivo da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) alega que o caso é típico de grilagem verde. “A empresa usurpa domínios alheios para fingir a regularidade ambiental de determinado imóvel”, assegura. Na carta aberta, as associações pontuam que as decisões judiciais que reconhecem a posse das comunidades da área da ASV foram ignoradas.

Advogado da empresa Delfin, umas das donas da Fazenda Estrondo, Bruno Bittar acredita que haja uma ganância dos povos tradicionais para adquirirem a posse das terras. “Em certos momentos, eles alegam ser povos tradicionais, mas, quando o Ministério Público foi dar o direito às terras, eles queriam as escrituras individuais. Tanto é que, no início, eram 11 famílias e, hoje, são 150. Eles estão vendo oportunidade e colocando a empresa, que tem a escritura há mais de 40 anos, como vilã”, defende Bittar.

Informações ainda apontam que o Inema teria notificado a Delfin a prestar esclarecimentos, mas o endereço para a entrega de correspondência é do Rio de Janeiro e as notificação não são entregues.

Em nota, a Delfin Rio S/A disse que possui licença legal emitida pelo Inema desde 2015, "tendo inclusive, recebido parecer favorável do Ministério Público da Bahia quanto à legalidade da emissão da licença pelo órgão ambiental, em 2018, quando houve questionamentos semelhantes por parte de terceiros", informa. Segundo a empresa, a ligação dos vales do Rio Preto e Rio Riachão continua mantida, e a supressão ocorrerá apenas em uma parte da área da Chapada, "com a preservação da vegetação integral dos vales".

A Delfin ainda comunicou que, apesar de, por lei, poder suprimir até 80% da área em questão, planeja desmatar 34,2%. "O que aparece nas imagens são aberturas dos corredores para afugentamento da fauna, que estão sendo acompanhadas por uma equipe multidisciplinar obedecendo as condições da licença ambiental", adiciona. A empresa argumentou que tem amparo legal desde 1981, com registros no Cartório de Registro de Imóveis, Receita Federal, Incra e em cadastros ambientais.

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