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Casarão que pegou fogo já foi residência de personalidade famosa da Bahia

Casarão que pegou fogo já foi residência de personalidade famosa da Bahia

Todo dia quando Tonico montava a banca de laranjas e começava a anunciar as mercadorias, em frente ao Fórum Ruy Barbosa, em Nazaré, precisava disputar a atenção dos clientes com o grito das crianças que corriam para a escola que funcionava em um casarão na Avenida Joana Angélica. A lembrança foi avivada enquanto o vendedor, hoje com 80 anos, observava os escombros que sobraram e a fumaça que saia do casarão que pegou fogo na noite de terça-feira (11).

Agora, o colorido das paredes foi substituído pelos borrões pretos provocados pelas chamas. As janelas já não existem mais, são buracos que atravessam a fachada que resiste de pé e levam a um grande vão vazio. Onde antes existia teto, restou apenas o céu aberto. As paredes que sobraram apresentam rachaduras e as grades foram retorcidas pelo calor do fogo. A Defesa Civil de Salvador (Codesal) disse que a solução é demolir.

Casarão ficou oco e sem teto (Foto: Joá Souza)
O fogo começou na noite de terça-feira. Três lojas funcionavam na base do casarão. Um estabelecimento de venda de calçados, outro de alimentos naturais e uma empresa de empréstimos consignados. Vizinhos contaram que os dois pavimentos superiores eram usados por moradores de rua e usuários de drogas. Os bombeiros identificaram colchões, móveis de madeira e outros objetos enquanto tentavam combater as chamas.

Era por volta das 22h quando os primeiros vizinhos perceberam a tragédia e avisaram aos bombeiros. Uma moradora do edifício Rosemar, que é separado do casarão apenas por um vão, contou que a fumaça e o clarão provocados pelo fogo deram o alerta. Ela levantou, foi até a janela e ficou assustada com o que viu. Os moradores tiveram que evacuar o prédio às pressas.

“Só tive tempo de pegar minha bolsa e sair. Foi um corre-corre danado. O prédio tem muitos idosos, então, muitos precisaram de ajuda para sair. Ficou todo mundo na calçada esperando os bombeiros chegarem, e depois que eles chegaram assistindo ao trabalho. Eles lutaram bastante com o fogo, mas estava muito alto. Foi horrível”, contou. Ela se queixou do estado de abandono do casarão e pediu para não ser identificada.


Moradores do edifício Rosemar (torre ao lado) saíram às pressas (Foto: Joá Souza)
Bombeiros X chamas
O 1º Grupamento de Bombeiros Militares (GBM) fica a 800 metros do local do incêndio, por isso, foram os primeiros a chegarem. A subcomandante, major Jamile Perrone, disse que a principal dificuldade foi conseguir alcançar o interior do prédio e controlar as chamas, porque havia muito material incendiário dentro do imóvel, como madeira, papelão e plástico. Ela contou que o fogo começou no primeiro pavimento acima do térreo e se alastrou para os outros andares.

“O pessoal dos prédios vizinhos deu apoio e nós conseguimos montar linhas laterais, no fundo e na frente do casarão. Isso fez com que o incêndio fosse controlado mais rápido, mas tivemos focos menores que persistiram e por isso foi preciso continuar o trabalho até o dia seguinte. Não pudemos entrar no prédio porque ele tinha várias ripas de madeira e muitas delas desabaram”, contou.

Apesar de controladas, as chamas deram trabalho para serem debeladas e estavam tão altas que foi possível avistar a tragédia de bairros vizinhos. No fotógrafo Elói Corrêa fez o registro da janela do apartamento dele, no Centro Histórico, a mais de 1 Km do local do incêndio. “Levantei para beber água e quando passei pela janela vi que um prédio estava pegando fogo. Fiz a imagens de celular. O fogo estava muito alto”, contou.


Morador do Centro Histórico ficou impressionado com a altura das chamas (Foto: Elói Corrêa)
O dia amanheceu e os bombeiros continuavam na luta para evitar que as chamas voltassem. No total, foram 12 horas de trabalho, sete viaturas empregadas, incluindo um carro-pipa e uma unidade do Salvar, e cerca de 20 homens trabalhando. Um grupo de curiosos se concentrou na calçada, do outro lado da avenida, para acompanhar os trabalhos. Um dos espectadores era o dono da loja de empréstimos consignados que funcionava no térreo, Bruno Matos.

“É um prejuízo imensurável. Nós tínhamos 13 anos aqui e perdemos tudo, mesas, cadeiras e computadores, com nossa cartela de clientes. Ainda não calculamos o tamanho do prejuízo. A gente tem três funcionários trabalhando nessa unidade e que agora estão desamparados. Começamos o ano com essa tristeza, não dá para acreditar”, afirmou.

Ele também reclamou do estado de abandono do casarão e disse que, no começo do mês, entrou em contato com a advogada que representa o dono do imóvel, mas que o proprietário não deu retorno às queixas. A causa do incêndio está sendo investigada.

O engenheiro da Defesa Civil de Salvador responsável pela ocorrência, Expedito Sacramento, contou que a estrutura foi muito atingida e que a solução é a demolição parcial do casarão. “Estamos monitorando as paredes e nossa proposta é fazer a redução do segundo pavimento. Caso o risco persista a gente parte para reduzir também a parte de baixo, porque existe risco de desabamento”, afirmou.

Seu Tonico, como quis se identificar o vendedor de laranjas do início dessa reportagem, lastimou a decisão, mas disse que concorda. “Esse era um prédio tão bonito e tão alegre. Hoje, não lembra nem de longe aquele tempo. Há mais de 30 anos ele está fechado. Sei que é melhor demolir para não acontecer um acidente, mas é o fim triste de uma história”, lamentou.

Moradia
Antes de servir como escola o casarão que pegou fogo foi residência de um dos principais estudiosos da Bahia, Braz do Amaral (1861–1949). Uma rua, no Bonfim, e uma escola, no Garcia, levam o nome dele. O historiador e especialista em história do patrimônio Manoel Passos contou que usou parte do material produzido pelo colega na elaboração da dissertação de mestrado dele e disse que a destruição do casarão é uma perda para a história da Bahia e do Brasil.

“Aquela era a residência de uma das personalidades históricas mais importantes da Bahia. O historiador Braz do Amaral é autor de pesquisas sobre a guerra da independência do Brasil na Bahia, trabalhos primorosos e que todo mundo deveria ler. É muito triste que um patrimônio material, e também imaterial por ter abrigado uma personalidade tão importante, tenha se perdido por falta de cuidado”, afirmou.

Passos contou que após a morte de Amaral foi cogitado transformar o espaço em uma biblioteca pública, através da doação de acervos pessoais para compor as estantes, mas a proposta não avançou. “Não é apenas um casarão, é uma história que está sendo perdida. A gente precisa dar um basta e exigir a restauração e preservação da nossa história. Hoje foi esse casarão. Amanhã será outro”, disse.

O pesquisador destacou que o prédio tinha estilo eclético e foi construído entre o final do século XIX e início do século XX. O historiador e professor do Instituto Dom de Educar (Rede UniFTC), Victor Porto, contou que os casarões tinham funções específicas.

“Foram construídos para servirem basicamente como moradia, tanto os de Nazaré como os dos bairros vizinhos do Centro Histórico. A maioria tem dois ou três pavimentos e foram pensados para serem residências. No caso de Nazaré, com o tempo houve um processo de modernização e novos prédios foram surgindo, mas ainda restaram alguns casarões”, disse.

Ele também cobrou maior empenho do poder público. “É importante que cada prédio desse esteja protegido pelos órgãos que são responsáveis por exigir a preservação da história e do patrimônio público”, afirmou.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) informaram que o casarão que pegou fogo não faz parte do conjunto tombado do Centro Histórico de Salvador e nem é tombado individualmente pelos órgãos.

O CORREIO não conseguiu contato com o proprietário do casarão.

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