No centro da cidade e na região do Iguatemi eles são inúmeros, às vezes até causando engarrafamentos. Mas nem todas essas vans, ônibus, micro-ônibus, motos e carros são regulamentados pela prefeitura de Salvador e esse sistema de transporte clandestino vem ganhando força. Nos últimos três anos, o número de veículos irregulares removidos de circulação cresceu 29,2%, segundo a Secretaria de Mobilidade de Salvador (Semob). Em 2019, foram 359 veículos apreendidos; em 2020, 449 e, em 2021, já são 464. O último levantamento feito pela Integra, em 2019, apontou que 1.600 veículos faziam transporte clandestino de passageiros. No último dia 6, o Ministério Público da Bahia determinou que a Semob tem até o dia 6 de janeiro para apresentar um plano de combate ao sistema irregular de transporte.

A reunião é resultado de uma queixa feita ao MP em 2016 por três entidades: União Geral dos Passageiros, Associação Metropolitana dos Usuários de Transporte Coletivo e a União Municipal e Metropolitana dos Estudantes Secundaristas, que tem assento no Conselho Municipal de Transporte. O representante das entidades, Alex Emanoel da Silva, é o responsável pela queixa. Segundo ele, a lista de problemas envolvendo o transporte clandestino é enorme.

“Esse tipo de sistema tumultua o transporte público regular, causa engarrafamentos. Outra grande questão é a segurança dos passageiros porque temos registros de acidentes, as regras não são seguidas corretamente, os veículos não têm condições adequadas. A Integra é licitada, paga uma série de impostos, os funcionários têm seus direitos trabalhistas, enquanto o transporte clandestino tem funcionários não qualificados, não paga impostos, não segue regras”, diz.

Em nota, a Associação das Empresas de Transporte de Salvador (Integra) ressaltou, entre os pontos negativos do transporte coletivo, a não adoção da gratuidade para idosos e pessoas com deficiência e da meia-entrada para estudantes. Além disso, destacou que o sistema não cumpre horário e itinerário e não tem seguro em caso de acidentes, assim como emprega menores de idade, não cumpre obrigações trabalhistas e emprega motoristas que não são habilitados para exercer o transporte de passageiros. “O transporte clandestino é responsável pela perda e extinção de milhares de postos de trabalho dos rodoviários”, finaliza a nota.

Alex ainda diz que o tráfico e a milícia no Rio de Janeiro e São Paulo utilizam esse mecanismo de transporte como forma de repressão às comunidades. “Estamos querendo evitar que isso aconteça aqui em Salvador. Aqui já identificamos que existe uma organização criminosa por trás desse tipo de transporte, não são simplesmente as pessoas que estão passando dificuldade que vão trabalhar nesse serviço. Existe todo um sistema para circular na cidade, cada dono de van tem que fazer pagamentos a cooperativas que não têm qualquer legalidade. Aí os veículos colocam uma faixa forjam um sistema regular”, acrescenta.

Combate ao transporte irregular

Segundo o secretário da Semob, Fabrizzio Muller, Salvador possuía uma legislação municipal que penalizava o transporte remunerado de passageiros não autorizado. No entanto, no último sábado (11), ela foi julgada como inconstitucional, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). A prefeitura já entrou com um recurso para anular esse julgamento para que essa lei possa voltar a ser utilizada.

Muller destaca ainda que os veículos que fazem esse tipo de transporte podem ser apreendidos por diversas razões. "O próprio artigo 231, inciso 8º, dispõe sobre o transporte remunerado de passageiros não autorizado, e determina que o condutor seja autuado e o veículo encaminhado ao pátio [da Semob]. Há outras infrações muito comuns de encontrar nesses veículos de transporte clandestino, como a falta de equipamentos de segurança, pneus carecas, sem habilitação, sem documentos. É muito comum flagrar infrações que acabam em apreensões”, diz.

Para o secretário, além da falta de pessoal/equipe reduzida, um dos maiores obstáculos existentes na atual estratégia de enfrentamento são os riscos aos quais os agentes fiscalizadores estão expostos. "Existem situações em que o agente precisa estar obrigatoriamente estar acompanhado de uma força policial,que possa garantir a segurança para o cumprimento da sua função”.

O que explica o crescimento?

A analista de transporte e tráfego Cristina Aragón, explica o porquê do aumento de apreensões de veículos irregulares entre 2019 e 2021. “Durante o período mais crítico de pandemia, tivemos escolas fechadas, trabalho home office. Isso provocou uma queda no número de usuários do transporte público, acentuando a crise. Depois das atividades retomadas, a gente tem informalidade, perda de emprego, crise econômica. Aí as pessoas buscam outras saídas para se deslocarem e para se sustentarem, acredito que isso tenha contribuído para o aumento da oferta e demanda do transporte clandestino”, coloca.

Cristina destaca que esse tipo de transporte existe porque há demanda, causada por falhas no sistema de transporte coletivo regular. “Existem localidades que não são bem atendidas, falta de conforto, problema com lotação e horários, além da questão de segurança pública. O sistema clandestino acaba se instalando para suprir essa deficiência do transporte regulamentar”, diz. Por isso, para ela, a solução não é acabar com o transporte coletivo por vans e micro-ônibus, mas, sim, regulamentá-lo. “Antes de pensar em reprimir esse tipo de transporte, devemos pensar em regulamentá-lo, exigindo um serviço de qualidade e seguro. Essa é a solução”, acrescenta.

O Observatório da Mobilidade Salvador concorda. Em nota, a entidade disse que os transportes irregulares ocupam o espaço deixado pelos cortes de linhas e diminuição da frota. “Antes de criminalizar esses empreendedores e trabalhadores dos transportes irregulares, precisamos entender por que eles existem e qual o papel que eles cumprem em uma cidade com altos índices de desemprego e de informalidade, e que vivencia um colapso dos transportes coletivos”, diz o comunicado. O Observatório defendeu ainda a reativação de linhas cortadas, aumento da frota, criação de faixas exclusivas, investimento em segurança dos usuários e diminuição do valor da tarifa de ônibus.

Para o gestor da Semob, Fabrizzio Muller, o crescimento das apreensões é explicado pelo aumento da fiscalização por parte da prefeitura. “O crescimento é causado por um maior enfrentamento que o município tem feito desde o ano passado, esse ano nós ampliamos nossas equipes que fazem o combate ao transporte clandestino", diz. Muller coloca ainda que a regulamentação desse transporte, feito através de vans e micro-ônibus, por exemplo, não é viável. “Não há como regularizar um sistema desse no município, por ora. Não há nenhum tipo de legislação que permita a regularização desse tipo de veículo, desse tipo de transporte", acrescenta.

O MP foi procurado, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.

Crise do transporte coletivo

A grande questão é o valor que o sistema regular deixa de arrecadar por conta do transporte clandestino. Segundo Alex Emanoel da Silva, a estimativa da Integra, feita em 2016, era que, por ano, o prejuízo seja de 16 milhões de reais. “Não há uma concorrência leal. Esse prejuízo é um dos responsáveis pela falência da CSN. O sistema de transporte coletivo como um todo está colapsado. As razões são diversas, como pandemia, crise econômica, chegada do uber e outros aplicativos, mas o transporte clandestino está entre esses fatores”, defende.

"Só para o sistema de ônibus, o prejuízo estimado é de R$ 3,5 milhões por mês, sem contar o impacto gerado nos trabalhadores do sistema convencional, gerando uma concorrência até desleal, já que esse sistema não paga tributos. Com as perdas há uma diminuição do número de postos de trabalho do serviço convencional”, complementa Fabrizzio Muller.

De acordo com informações da Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob), em fevereiro de 2020 a média diária de passageiros transportados era de aproximadamente 1 milhão. Em fevereiro deste ano, este número foi de 715 mil usuários do serviço. O secretário de mobilidade ressaltou que, durante a pandemia, a média diária chegou a até 300 mil passageiros, o que representa uma queda de 70% em relação à normalidade. Esse cenário, junto com outros fatores, provocou a crise do transporte coletivo em Salvador e outras cidades do país. Na capital baiana, uma das três bacias atuantes foi à falência.

O rompimento do contrato com a Concessionária Salvador Norte (CSN) foi anunciado pelo prefeito Bruno Reis em 27 de março de 2021, que alegou diversas irregularidades operacionais, fiscais e trabalhistas. Segundo o prefeito, as dívidas da CSN eram de R$ 516 milhões.

Os serviços estavam sob intervenção da prefeitura desde 16 de junho de 2020 e, com a caducidade, passaram a ser de inteira responsabilidade do poder público. A concessionária operava o lote de regiões como Estação Mussurunga e Orla, a maior alimentadora da linha 2 do Metrô.

Após tentativas frustradas de licitar o lote antes operado pela CSN, a prefeitura de Salvador anunciou a redistribuição das linhas para as outras duas empresas que já operam o sistema, que foi concluída em setembro deste ano. Para garantir o atendimento, 150 ônibus foram adquiridos pela Plataforma e OTTrans.

O prefeito Bruno Reis viajou até Brasília no último dia 8 para discutir com o governo federal e o Congresso Nacional o financiamento do transporte público nas médias e grandes cidades. Ele é um dos integrantes da mobilização articulada pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), que reúne mais de 60 gestores no chamado Dia D.

De acordo com o prefeito Bruno Reis, o tema é um dos principais desafios enfrentados pela capital baiana no momento, já que a crise no sistema, que vem ocorrendo há anos, foi agravada pelos impactos provocados pela pandemia de covid-19, com a queda na arrecadação do sistema, além do aumento no valor de combustíveis, com o retorno da inflação no país.

“É notório que a tarifa sozinha não custeia mais o sistema e que o ônus acaba caindo no colo dos municípios, que precisam investir recursos para que o serviço não entre em colapso e, também, que essa conta não seja transferida para a tarifa, causando imensos prejuízos à população. No entanto, os municípios não têm condições de arcar com este custo sozinhos. Por isso, é essencial que o governo federal aporte recursos para solucionar esse problema”, destacou Bruno Reis.

Como funciona o sistema

A cidade é dividida em duas Áreas Operacionais e cada uma delas é identificada por uma cor e atendida por uma concessionária de transporte de passageiros, que recebe da prefeitura, por meio de licitação, a concessão para operar. São elas: Área Operacional do Miolo, na cor verde (Ótima Transportes de Salvador SPE S/A) e Área Operacional do Subúrbio, na cor amarela (Plataforma Transportes SPE S/A). Os ônibus que eram operados pela CSN são da cor azul.

A Integra, Associação das Empresas de Transportes de Salvador, congrega as atividades comuns das concessionárias do transporte coletivo por ônibus de Salvador vencedoras do Certame Licitatório 001/2014 promovido pela Semob.