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Estudo inédito mostra que guerra às drogas tem cor e endereço em Salvador

Estudo inédito mostra que guerra às drogas tem cor e endereço em Salvador

Guerra às drogas tem cor e endereço marcados em Salvador. É o que aponta um estudo realizado pela organização Iniciativa Negra e que será divulgado nesta sexta (19), véspera da celebração do Dia da Consciência Negra. Segundo a pesquisa, a abordagem policial varia de acordo com os bairros da capital baiana - quanto mais negro, mais letal. O relatório expõe como a violência, a partir do discurso de combate ao tráfico, organiza os territórios através da repressão.

Ao monitorar nos noticiários eventos violentos, os pesquisadores elencaram os bairros que tiveram mais casos entre junho de 2019 e fevereiro de 2021: São Cristóvão, com 118 casos; Sussuarana, com 71; Itapuã, com 62; seguidos por Mata Escura, Nordeste de Amaralina, Lobato, Pernambués, Pituba, Boca do Rio e Brotas.

Segundo a pesquisa Mesmo que me Negue Sou Parte de Você: Racialidade, Territorialidade e (r)existência em Salvador, bairros onde vivem majoritariamente pessoas negras com menos ocorrência de uso e porte de drogas têm números maiores de violência policial do que áreas da cidade onde há mais casos envolvendo substâncias ilícitas e residem pessoas majoritariamente brancas.

Um exemplo, segundo o estudo, é a Pituba, que mesmo tendo altos índices de registros de uso e porte de drogas, não registrou nenhuma morte violenta entre janeiro e dezembro de 2020. Enquanto isso, o Nordeste de Amaralina, composto por maioria negra, aparece com menor número de registros de substâncias ilícitas e mais casos de mortes violentas. Nenhum bairro onde há majoritariamente pessoas brancas aparece de forma significativa no monitoramento de notícias que foi realizado.

“Os dados que apresentamos são com base em catalogações de informações da Rede de Observatório da Segurança e da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Destacamos os dez bairros que mais apareciam nos indicadores da Rede e, a partir disso, fizemos rodadas de entrevistas com moradores.”, explica a pesquisadora Luciene Santana.

Entre os eventos violentos que apareceram na mídia e foram analisados pela pesquisa, entre junho de 2019 e fevereiro de 2021, a ‘violência, abuso e excesso por parte dos agentes do estado’ foi o mais recorrente, com 1.447 registros. Seguido por ‘policiamento’, com 663 e ‘eventos envolvendo armas de fogo’, com 244 notificações. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou no seu anuário deste ano, inclusive, que mortes causadas por policiais cresceram 47% na Bahia, sendo que das 55 cidades brasileiras com mais mortes decorrentes de intervenções policiais, sete ficam na Bahia.

“A guerra às drogas é, na verdade, uma guerra contra as pessoas, e o resultado de um projeto de Estado que elegeu os negros como inimigos, através da negação dos direitos e do uso da violência”, afirma Dudu Ribeiro, historiador e cofundador da Iniciativa Negra.

Em setembro deste ano, um confronto entre policiais e traficantes no bairro de Brotas, que faz parte da lista dos dez mais violentos do estudo, acabou com a morte de um homem, que, segundo a polícia militar, era traficante. Já no bairro Mata Escura, entre o final de 2019 e início de 2020, quarto mais violento, seis homens foram mortos pela polícia, com menos de 20 dias de diferença entre um caso e outro. As duas ações foram decorrentes de operações contra o tráfico de drogas.

Outro dado que chama atenção na pesquisa é a dificuldade do acesso público a equipamentos de cidadania. Em áreas onde a letalidade é vertiginosa, é escassa ou nula a quantidade de equipamentos culturais. O mesmo ocorre com a saúde: bairros com maior número de notícias sobre violência sofrem com baixa cobertura de políticas públicas voltadas à saúde dos moradores. Segundo o estudo, essas ausências representam a política de exclusão e marginalização de certos locais e moradores da cidade.

“O que percebemos é uma ausência do Estado nas localidades em que há mais pessoas negras e mais ocorrências de eventos violentos. Por isso, é fundamental a aplicação de políticas públicas para que haja a prevenção da violência”, explica a pesquisadora Luciene Santana.

No texto, os pesquisadores afirmam que a violência é um fator que co-organiza a vida de moradores dos dez bairros citados no estudo: “Se está acontecendo uma operação policial, se acontecer uma morte ou tiver um toque de recolher, as pessoas não conseguem ir trabalhar, viver a sua sociabilidade e usufruir do direito à cidade”, afirma Luciene.

Discurso x prática

“A guerra às drogas é uma estratégia equivocada, tanto do ponto de vista político, como de discurso, porque, além de não produzir cuidado, não diminui a violência e nem o tráfico de drogas”, afirma Bruna Rocha, que é fundadora da plataforma Semiótica Antirracista e integrante do Programa Corra pro Abraço, da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS).

O programa trabalha com a redução de danos e promoção do cuidado de pessoas que apresentam uso excessivo de álcool e outras drogas, através da garantia de direitos, como acesso à educação, justiça, saúde e recuperação de documentos. Segundo Bruna, há um imaginário racista e conivente com a violência contra pessoas negras que atravessa toda a narrativa de guerra às drogas, fazendo com que seja, na verdade, uma guerra a pessoas e territórios e não às substâncias.

A pesquisa “Mesmo que me negue sou parte de você” também aponta falhas na cobertura midiática. Segundo o estudo, os meios de comunicação privilegiam notícias de ações de patrulhamento, somando 801 no período analisado, mas pouco noticia os efeitos letais destas ações.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) afirma que atua de forma preventiva e repressiva contra o comércio de entorpecentes e que, desde o início do ano, mais de 15 toneladas foram apreendidas. No que diz respeito à letalidade policial, a SSP-BA ressalta que no primeiro semestre de 2021 o número de mortes em decorrência de ações da polícia diminuiu 33%, se comparado ao mesmo período do ano passado.

Em setembro deste ano, o secretário de segurança pública, Ricardo Mandarino, chegou a afirmar que apesar de não “suportar drogas”, o comércio deveria ser regulamentado, com política de vendas semelhante ao cigarro para combater o tráfico. Questionada, a SSP-BA afirmou que os estados não têm autonomia para esse tipo de decisão.

Já a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi-BA) reconheceu, através de nota, que o racismo é um problema estrutural e secular, afetando diariamente as relações sociais e limitando o acesso às políticas públicas em diversos campos. Afirmou ainda que a secretaria tem feito investimentos visando a inclusão e combate ao racismo e exemplificou com o Edital da Década Afrodescendente, que viabilizou um conjunto de projetos.

Procuradas para comentar o estudo, tanto a Secretaria de Municipal de Reparação (Semur), quanto a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS) não retornaram até a finalização desta reportagem.

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