Usando o medo do além pra pecar

Usando o medo do além pra pecar

O medo de queimar no inferno ou purgar os pecados por longo tempo no purgatório não foi apenas usado por sacerdotes para tentar corrigir o comportamento das pessoas. Certos frades inescrupulosos se aproveitavam da ingenuidade de alguns fiéis para arquitetar aventuras amorosas. Estamos falando no contexto do livro Decamerão, de Giovanni Boccaccio, escrito no século XIV, em Florença, norte da Itália, após uma pandemia de peste bubônica. Em algumas das cem novelas do livro, o escritor se esmerou em mostrar a hipocrisia de parte dos religiosos da época, principalmente integrantes das ordens mendicantes franciscana e dominicana. E a própria salvação da alma entrou como estratégia para engendrar atos adúlteros.

A quarta novela da terceira jornada do Decamerão, relata a história de um homem bondoso e rico, chamado Puccio di Rinieri, que resolveu se dedicar totalmente às coisas do espírito e tornou-se membro da confraria leiga Ordem Terceira de São Francisco. A mulher dele, que se chamava Isabetta, jovem ainda, viçosa e bela, lamentava o desinteresse do marido por ela. Nisso, um jovem monge chamado dom Felice tornou-se amigo de Puccio e, em pouco tempo, chamou-lhe a atenção a beleza de Isabetta. O frade passou a cortejá-la e logo arrumou um plano pra tirar o marido do caminho. Apresentou uma penitência infalível pra o futuro corno salvar a alma. Instruiu Puccio a arrumar um lugar na casa onde à noite pudesse ver o céu e, encostado numa tábua, se manter na posição de um crucificado. Assim, deveria rezar até o sol nascer. Isso durante 40 dias. Incontinenti, Puccio, com medo do pós-vida, armou sua tábua na varanda do quarto e iniciou sua penitência. Enquanto isso, Isabetta destrancou a porta de casa no horário acertado com dom Felice, que entrou sorrateiramente. Enquanto Puccio permanecia rezando para escapar do purgatório, os amantes chegavam ao paraíso na cama.

Plano mais audacioso foi a de certo abade da Toscana que também se aproveitou do medo da morte do comerciante Ferondo - outro personagem que preferia se preocupar mais com a vida religiosa do que com sua bela mulher. O religioso resolveu simular uma visita de Ferondo ao purgatório. Sem entender muito o plano, a mulher do comerciante concordou, pois, seduzida pelo abade, não aguentava mais os ciúmes do marido. Assim, o abade colocou um pó na bebida de Ferondo que o fez dormir três dias. Considerado morto, o comerciante foi pranteado e sepultado no mosteiro do abade. Seguindo o plano, o abade com a ajuda de um frade amigo, retirou Ferondo da sepultura e o colocou numa cela do mosteiro totalmente escura e sem luz. Quando o comerciante acordou o cúmplice do abate entrou na cela e, armado com uma vara, passou a espancar Ferondo, alegando com voz fantasmagórica que ele havia morrido e estava no purgatório cumprindo penitência pelo fato de ser muito ciumento. Durou 40 dias a pena de Ferondo no falso purgatório, enquanto o abade aproveitava as delícias da vida terrena com a mulher do comerciante. Mas não vou contar o fim dessa história pra que quem não leu o Decamerão possa aproveitá-la.

Apesar dos ataques pesados de Boccaccio contra a Igreja, não consta que ele tenha sido chamado pela Inquisição para se explicar. No entanto, o Decamerão foi incluído no index Librorum Prohibitorum, a lista de autores proibidos da Igreja, cuja primeira versão foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 , portanto 184 anos depois da morte de Boccaccio.

 

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Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.

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