Ao completar 80 anos, em 30 de março de 2017, o diretor José Celso Martinez Corrêa sentenciou categórico que não queria mais nada para si mesmo, estava satisfeito em sua individualidade. "Eu gostaria de viver mais uns dez anos e quero tudo para o teatro", afirmou, iluminado pelo sol da tarde de outono que entrava pela janela lateral do Teatro Oficina, no centro de São Paulo. Zé Celso falou como se aquilo fosse uma novidade. Não, não era, afinal, desde o final da década de 1950, quando abandonou a faculdade de direito para defender suas ideias no palco, era só nisso que ele pensava, no teatro.
E foi assim até o fim. Ator, diretor, dramaturgo e militante das artes e da política, Zé Celso Martinez Corrêa morreu aos 86 anos em São Paulo, nesta quinta-feira (6), depois de sofrer graves queimaduras em um incêndio na manhã desta terça, 4, no seu apartamento, no bairro do Paraíso, na zona sul da capital, onde vivia com o marido, o ator Marcelo Drummond. A informação foi confirmada pelo ator Pascoal da Conceição, amigo de Zé Celso. Ainda não há informações sobre o velório e sepultamento do artista.
Nascido em Araraquara, ele foi criado em uma família de sete filhos por uma rigorosa mãe descendente de espanhóis, de sangue quente, e um pai dócil, amante dos livros e do cinema, que o levava na infância para ver os filmes.
O futuro garantido passava pela advocacia e, em um primeiro momento, o rebelde Zé Celso acatou uma tentativa de estabilidade profissional, como ditava a cartilha de sua geração. Mas foi na faculdade do Largo do São Francisco que tudo começou ao frequentar o Centro Acadêmico 11 de agosto e cruzar com dois colegas de faculdade, o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad, que, junto dele, fundariam em 1958 o Teatro Oficina. Tratava-se da ambição de fazer um movimento diferente como respostas às influências europeias do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e o nacionalismo exacerbado do Teatro de Arena.
Estudioso do método do russo Constantin Stanislavski, Zé Celso mudou o conceito da atuação brasileira. Por ele, as peças não seriam mais organizadas numa uma sucessão de falas justapostas, mas por um permanente (e fundamental) diálogo entre o elenco e a plateia. Em suas peças, o diretor procurava desconstruir o moralismo conservador, com nudez, sarcasmo e escatologia. Para ele, a transgressão era uma afronta necessária e elemento basilar da poética do Oficina, mesclando o profano e o sagrado no palco.
Os primeiros textos montados são Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), de fortes tintas biográficas. Ficaria difícil nas décadas seguintes imaginar Zé Celso, de terno, gravata e toga, exercendo nos tribunais o ofício dos diplomados no Largo São Francisco. A lábia comum aos advogados, no entanto, nunca o abandonou e se tornou uma de suas maiores qualidades ao defender sua obra com base em discursos polêmicos e inovadores. Sempre conectado às transformações internacionais, Zé Celso colocou o Oficina no centro da vanguarda brasileira.
A consagração se dá no mergulho do universo brasileiro e antropofágico do escritor Oswald de Andrade. O Rei da Vela, peça escrita pelo modernista em 1937, permanecia inédita nos palcos e foi encontrada por Borghi em um antigo livro que mofava na estante. Os dois viram naquela atualíssima crítica ao capitalismo disfarçada de alegoria a melhor resposta para os militares que endureciam cada vez mais o regime. O Rei da Vela estreou em 29 de setembro de 1967 e detonou a explosão tropicalista que tinha começado a ser desenhada pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, lançado em maio, e atingiria o público da música em 1968 com o disco Tropicália ou Panis et Circenses, capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Considerado o Dionísio brasileiro, Zé Celso foi saudado como uma fênix no anúncio de sua morte pelo Teatro Oficina. "Nossa fênix acaba de partir para a morada do Sol", disse a companhia em anúncio nas redes sociais.
Preso pela ditadura
Em 1974, Zé Celso foi preso numa solitária e torturado. Sem condições de trabalho no Brasil, o artista se exilou em Portugal, onde montou "Galileu Galilei", espetáculo inspirado na teoria do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Em 2010, Zé Celso foi anistiado pelo Estado brasileiro, recebendo também uma indenização de R$ 570 mil.
Nascido em Araraquara, no interior de São Paulo, Zé Celso estudou para ser advogado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. No Centro Acadêmico 11 de Agosto, integrou o grupo de jovens que formaria o Teatro Oficina em sua fase amadora.
Ao longo do tempo, o Oficina se tornou um centro de estudos da dramaturgia brasileira. No teatro, foram formados atores como Bete Coelho, Leona Cavalli e Esther Góes. Por ali, passaram também Augusto Boal, Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Zezé Motta.
A volta à cena se dá em 1991 com As Boas, adaptação da peça As Criadas do francês Jean Genet, em que, além de dirigir, contracena com Raul Cortez e Marcelo Drummond, seu novo parceiro de vida de arte. Zé Celso e Marcelo se casaram há cerca de um mês. Ele também estava presente no momento do incêndio, provocado por uma no aquecedor do quarto do casal, e segue internado em observação pois inalou muito mais fumaça do que sofreu queimaduras.
No cinema, Zé Celso assinou o roteiro de Prata Palomares, de 1972, atuou em Um Homem Célebre, dois anos depois, e dirigiu o curta-metragem O Parto, em 1975. Em 2015, voltou a atuar, no filme Ralé, ao lado de Helena Ignez. Seu maior êxito no cinema foi a adaptação de O Rei da Vela, que arrematou os prêmios de melhor montagem e de melhor trilha sonora do Festival de Gramado.
Durante quatro décadas, o artista brigou na Justiça com Silvio Santos. O apresentador e dono do SBT, que era proprietário do terreno, pretendia construir ali um conjunto residencial de três torres, cada uma com cem metros de altura. Já o artista brigava para que fosse construído um parque público no local.
Zé Celso deixa o marido, Marcelo Drummond, ator do Oficina, com quem viveu durante 37 anos. Num prólogo da tragédia, os dois se casaram, no mês passado, na sede do teatro. Zé Celso apresentava o seu derradeiro ato, um espetáculo festejado pela classe artística, bacantes que comungavam juntos o amor, o humor e um revolucionário do teatro brasileiro.
Volta aos palcos
No começo de 2022, aliviada a pandemia, Zé Celso colocou no palco sua versão de Esperando Godot, investida na obra de Samuel Beckett, como metáfora para a paralisia de muitos setores diante dos desmandos do ex-presidente Jair Bolsonaro. O mesmo cenário serviu de inspiração para o espetáculo Fausto, de Christopher Marlowe (1564-1593).
Entre agosto e setembro do ano passado, no clamor da eleição que reuniu Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva na disputa presidencial, Zé Celso colocou em cena a dicotomia entre o bem e o mal. "Criamos um Fausto brasileiro fazendo a travessia, que é essa grande transformação de sair de uma pandemia e de um governo que colocou o Brasil no baixo calão e esperar por dias mais democráticos", definiu Zé Celso, em entrevista ao Estadão.
O último espetáculo criado e protagonizado por Zé Celso, no entanto, se deu em torno de um episódio de sua vida real. Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a união com o ator Marcelo Drummond, companheiro há 37 anos, em uma grande festa no Teatro Oficina que reuniu centenas de convidados, entre amigos, artistas, políticos e personalidades ligadas à cultura brasileira.
As cantoras Marina Lima e Daniela Mercury interpretaram respectivamente as canções Fullgás e Terra, as atrizes Bete Coelho e Leona Cavalli realizaram performances e a bateria da escola de samba Vai-Vai terminou a celebração com todos os convidados aos gritos emocionados de "evoé", a saudação teatral que evoca Baco, o deus dos vinhos e das festas, uma representação do que Zé Celso representou - e continuará representando - na cena brasileira.