Tragédia da Cavalo Marinho I completa cinco anos com processo parado e sem sentença

Tragédia da Cavalo Marinho I completa cinco anos com processo parado e sem sentença

Desde 2017 a funcionária pública Jucimeire Santana, 51, não vai à praia, pisa na areia ou chega perto de uma lancha. Moradora do município de Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, ela é uma das sobreviventes do acidente com a lancha Cavalo Marinho I, que adernou quando fazia a travessia Salvador - Mar Grande com 116 passageiros e quatro tripulantes a bordo. Ao todo, 19 pessoas morreram na tragédia e 54 sofreram lesões e ferimentos. Após cinco anos, familiares dos mortos e quem escapou da tragédia ainda buscam justiça.

Representante, entre 2017 e 2018, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no caso, Mateus Nogueira explica que três tipos de representações judiciais se desenrolaram desde então, sendo que em apenas uma houve encerramento do caso. Um dos processos abertos é no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), a partir do qual a vítima ou familiares constituíram advogados particulares ou via Defensoria Pública contra a empresa, solicitando indenização.

“Nem o luto a gente teve tempo de passar naquele momento, porque precisava resolver todas essas questões de sepultamento, pagamento. Em momento algum a empresa se disponibilizou e nem custeou nada”, afirma Aline Souza, que perdeu o pai no naufrágio.

Do mesmo modo, não houve sentença na esfera criminal, repartição do Ministério Público da Bahia (MP-BA) que envolve prisão, prestação de serviço e pagamento de cesta básica, por exemplo. O MP-BA salientou que ofereceu denúncia, ainda em 2017, contra o marinheiro Osvaldo Coelho Barreto, comandante da embarcação na época, e o empresário Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da CL Empreendimentos, empresa responsável pela lancha. As alegações finais já foram dadas e a Justiça aguarda apenas a sentença do juiz.

“Eles foram denunciados por homicídio culposo e lesão culposa. Com base nos laudos periciais, a denúncia aponta que os dois agiram com imperícia e imprudência na condução da lancha Cavalo Marinho I, no dia 24 de agosto de 2017. O processo criminal se encontra concluso para decisão da Justiça”, ressalta o MP-BA.

“Tomo nove medicações, tomo medicação até para dormir. Não entro no mar, não atravesso lancha, não piso na areia. Mudou completamente a minha vida. Desenvolvi síndrome do pânico”, diz Jucimeire, a sobrevivente que abre essa reportagem.

Das três ações, segundo familiares, houve encerramento apenas na esfera marítima. Em nota, o Comando do 2° Distrito Naval da Marinha do Brasil confirmou que a ação envolvendo o acidente foi encerrada em junho de 2021. O Tribunal Marítimo, cuja função é apurar responsabilidades referentes ao acidente, cancelou o Certificado de Registro de Armador da CL Empreendimentos.

A corte ainda considerou que Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da CL, e Henrique José Caribé Ribeiro, engenheiro da embarcação, tinham conhecimento dos riscos. Já Osvaldo Coelho Barreto, comandante da embarcação, foi absolvido.

A entidade destaca ações de prevenção em 2022. “No período entre os meses de maio e junho, antevendo as condições de mar características do inverno, foram intensificadas as vistorias das embarcações quanto à confiabilidade das estruturas e das instalações de máquinas. Também houve modificações nas especificações técnicas dos sistemas de ancoragem, de modo a tornar o conjunto mais resistente às condições de mar, durante o fundeio das embarcações”.

A reportagem entrou em contato com o TJ-BA solicitando informações sobre a tramitação dos processos, porém, não recebeu retorno.

Ondas maiores que o normal
Sobreviventes do caso apontam que a causa do acidente foi falta de manutenção na infraestrutura da lancha. Segundo eles, caso houvesse constante fiscalização da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) e correção dos responsáveis pela embarcação, as mortes poderiam ser evitadas.

Mas, para o advogado Leite Matos, representante de Osvaldo Coelho Barreto, a causa do acidente foi o clima atípico no dia. Ele assegura que surgiram ondas maiores que o normal em decorrência das condições climáticas e não houve falha humana. “Tem situações no mar que não se pode prever o dia que vai acontecer”, declara.

Enquanto isso, vítimas como Jucimeire aguardam indenização e punição aos acusados. Ela recorda que ficou internada durante sete dias por ter tido uma pneumonia após o episódio. “Foi um susto muito grande, eu estava na parte de cima quando de repente vi a lancha virar de 'bico'. Não podia fazer nada, as pessoas gritando, os botes estavam presos, foi um desespero. O dinheiro não vai pagar o que a gente passou, mas eles [acusados] têm que ser punidos”, diz.

A comerciante Alexandra Bonfim, 39, perdeu a irmã, Alessandra, 34, e teve que lidar, além do luto, com o auxílio na criação dos três sobrinhos. Na época, os filhos de Alessandra tinham 13 anos, 7 anos e, o mais novo, 1 ano e 3 meses. “A gente sente [a dor] até hoje. O caçula não lembra muito porque era muito pequeno, mas [para] os dois mais velhos foi um choque. O mais velho entrou em depressão imensa”.

A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) tem 36 ações ajuizadas para garantir indenizações às vítimas da tragédia. A reportagem entrou em contato com a entidade, que falou da decisão do Tribunal Marítimo. “Na nossa avaliação, aquilo poderia ter sido evitado se a embarcação não tivesse saído por conta da condição climática. Afinal, se a condição não é favorável, não deveria ter saído naquele momento”, afirmou o defensor Gil Braga.

Segundo ele, são 36 ações acompanhadas pela Defensoria Pública, sendo uma em Salvador e as outras em Itaparica. A expectativa é que a sentença seja favorável às vítimas. “Em relação ao tempo, não conseguimos afirmar porque isso depende da produção de provas e o tempo do próprio Judiciário, que temos de respeitar. Não dá para afirmar que vai demorar um tempo xis, o que podemos dizer é que o que cabe à Defensoria Pública está sendo executado, como o cumprimento dos prazos e acompanhamentos dos familiares e atendimento das pessoas que procuram informações”, acrescenta Gil Braga.

A Agerba foi questionada sobre falta de fiscalização no caso da Cavalo Marinho I, mas não se posicionou e comunicou que “a restrição de navegação não compete à agência”. Já o advogado de Lívio Garcia Galvão Júnior, Manoel Pinto, informou que “acordos foram propostos em audiência, nos mesmos termos dos acordos precedentes que foram aceitos, homologados e pagos, mas alguns não foram aceitos, daí as ações passaram a correr normalmente”.

Familiares e sobreviventes fazem caminhada
Um ano após a tragédia da lancha Cavalo Marinho, parentes dos mortos no acidente e sobreviventes se reuniram em missa pelas 19 vidas perdidas em 2017. A partir de 2018, amigos e familiares ligados pela perda começaram a realizar uma caminhada anual pelo munícipio de Vera Cruz. Nesta quarta-feira (24), a partir das 8h, cerca de 50 pessoas devem sair com carro de som, balões e rosas brancas, relembrando entes queridos.

A biomédica Aline Souza, 38, perdeu o pai, Antônio Souza, 68, e se prepara para viajar até a cidade e participar da manifestação anual. “Estou saindo do meu trabalho, porque moro em Salvador, e voltando para a ilha para me juntar ao pessoal. Cinco anos e a gente não tem respostas, nem indenizações”, protesta.

Ela conta que estava trabalhando quando recebeu a notícia do acidente na travessia Mar Grande-Salvador, através de uma reportagem ao vivo na TV. No dia, o pai de Aline havia embarcado na lancha para buscar a esposa, com quem era casado há mais de 40 anos. Preocupada, Aline diz que recebeu orientação de ir ao Instituto Médico Legal. Ao chegar no local, reconheceu o corpo do pai.

“Foi tudo muito difícil. Ele residia em Vera Cruz há 5 anos, era aposentado, quando minha mãe se aposentou, resolveram comprar casa para poder veranear”, relembra. “Foi o pior dia da minha vida. Ainda fico muito chocada quando falo sobre isso, vem tudo na memória, tudo que vivi naquele dia”.

Parentes e sobreviventes criaram um grupo nas redes sociais para se atualizar sobre as decisões judiciais e não deixar no esquecimento o que aconteceu em 2017. Contudo, familiares ouvidos pela reportagem afirmam que têm visto o movimento esfriar. Após cinco anos sem resultado judicial, o caso já é visto com desesperança. Mas ainda existe a persistência:

“Vou continuar nessa busca incansavelmente até ter retorno do juiz, que [ele] possa concluir e nos dar paz”, pede Aline.

Relembre o caso
O caso da lancha Cavalo Marinho I foi a maior tragédia recente na Baía de Todos-os-Santos. O acidente aconteceu cerca de dez minutos depois de a embarcação, com 116 passageiros e quatro tripulantes, ter deixado o Terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica. O acidente ocorreu por volta de 06h44, a cerca de 200 metros do Terminal Marítimo do município de Vera Cruz.

A embarcação foi atingida por três ondas. A primeira desviou o barco do rumo original, assim como a segunda. Já a terceira provocou inclinação em 90º [o barco adernou] e a consequente queda dos passageiros e tripulantes na água, com exceção dos que estavam no convés inferior, onde a água entrou pelas janelas e escadas de acesso, impossibilitando os passageiros de abandonarem o compartimento. Os sobreviventes que estavam no convés inferior conseguiram sair passando pelas janelas. A tripulação conta que aguardou socorro por 2 horas, à deriva.

A Marinha do Brasil (MB), Corpo de Bombeiros Militar, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e o Grupamento Aéreo da Polícia Militar da Bahia (Graer) foram acionados para resgatar os feridos.

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  • STJ determina que médicos peritos federais mantenham atendimentos

    O vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Og Fernandes, concedeu, na noite passada, liminar pedida pelo governo para limitar a greve de peritos médicos federais marcada para esta quarta-feira (31). Pela decisão, a Associação Nacional dos Médicos Peritos da Previdência Social (ANMP), que está à frente do movimento paredista, fica obrigada a manter em atividade 85% dos peritos no Distrito Federal e em 18 estados – Alagoas; Amazonas; Amapá; Bahia; Ceará; Distrito Federal; Espírito Santo; Goiás; Maranhão; Mato Grosso; Pará; Paraíba; Pernambuco; Piauí; Paraná; Rio Grande do Norte; Rondônia; Sergipe e Tocantins.

    Nos demais oito estados – Acre, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo – devem permanecer em atividade 70% dos peritos. De acordo com o STJ, deve ser garantido o funcionamento das atividades de perícia médica de análise inicial de benefícios e direitos previdenciários e assistenciais. A diferença nos percentuais se dá em função dos diferentes tempos de espera para agendamento das perícias, que são mais longos em estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

    Fernandes, que está responsável pelo plantão judicial do STJ, acolheu os argumentos da União, que apontou a essencialidade do serviço. “De fato, as atividades médico-periciais estão afetas a benefícios de subsistência da população, cuja paralisação pode colocar em perigo iminente a sobrevivência e a saúde da comunidade envolvida”, disse o ministro.

    Segundo o governo, duas paralisações anteriores da categoria impediram a realização de 10 mil perícias, que são etapa imprescindível para concessão de benefícios como auxílio-doença e de prestação continuada (BPC). Isso prejudica principalmente a população mais pobre, argumentou a União.

    O vice-presidente do STJ decidiu apenas em relação aos percentuais mínimo de peritos que devem ser mantidos em atividade. Fernandes não analisou outros pedidos da União e não entrou no mérito da legalidade do movimento grevista. Tais pontos devem ser analisados pelo relator do caso, ministro Mauro Campbell. Os médicos peritos federais reivindicam reajuste salarial de 23% e a realização de novos concursos públicos para contratação de pelo menos 1.500 profissionais. A categoria reivindica o cumprimento de acordo fechado com o governo para encerrar uma greve de 52 dias realizada em 2022.

  • Caso Marielle: PF investiga se regularização de condomínio na Zona Oeste do Rio teria motivado assassinato

    Conforme publicado pelo blog do colunista Lauro Jardim, no último domingo, a delação premiada de Lessa foi para o STJ. Isso indica, como O GLOBO informou ontem, que o nome citado pelo ex-PM tem foro por prerrogativa de função. Caberá ao ministro Raul Araújo decidir se aceita ou não o acordo de colaboração.

    A regularização fundiária já tinha surgido na investigação da morte de Marielle e do motorista Anderson Gomes ainda em 2018.

    As negociações da PF com Lessa tiveram início logo após os agentes federais assumirem o caso, em fevereiro do ano passado. Logo que o presidente Lula foi eleito, ele pediu ao então ministro da Justiça Flávio Dino que tentasse esclarecer o crime contra a parlamentar e o motorista Anderson Gomes, ocorrido em 14 de março de 2018. Com a proximidade de o crime completar seis anos, as trativas aceleraram. Primeiro buscou-se levantar a resposta sobre o mando com o também ex-policial militar Élcio de Queiroz, que atuou como motorista na emboscada contra Marielle. Mas como a informação sobre o assassinato da vereadora era compartimentada por Lessa, ou seja, ele não passava todos os detalhes para quem agia com ele nos crimes, Élcio citou apenas o nome de Domingos Brazão, sem muitos detalhes.

    Sem evidências suficientes, os agentes federais do Grupo Especial de Investigações Sensíveis (Gise) — grupo especializado na elucidação de casos complexos — dependiam exclusivamente de Lessa para chegar à pessoa que mandou matar a parlamentar. No fim do ano passado, logo após o ex-PM aceitar a colaborar com o caso Marielle, o STJ realizou duas sessões secretas para confirmar qual seria o foro das tratativas iniciais do acordo de delação premiada de Lessa.

    Nas sessões secretas, foi discutida se a negociação da delação deveria tramitar sob os cuidados do Ministério Público Federal (MPF) ou do Ministério Público do Rio (MPRJ). Em virtude de o caso ser sigiloso, as sessões foram realizadas a portas fechadas, sem a presença de público. Segundo ministros que participaram das sessões, a conclusão final foi pela competência do MPF para acompanhar as tratativas.

    Embora a delação coubesse ao MPF, coube ao Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio acompanhar as investigações, uma vez que são eles que conhecem com profundidade o processo dos homicídios de Marielle e Anderson. Para que Lessa colaborasse, os agentes da PF e procuradores da República ofereceram várias vantagens ao ex-PM para que indicasse o mandante.

    De acordo com o artigo 473 do Código de Processo Penal, não se pode prometer a absolvição ao delator. Como ele cometeu um homicídio, ou seja, um crime contra a vida, considerado pela Constituição um bem maior, tal benefício não pode ser oferecido. Cabe ao júri a decisão, por ser soberano. Essa cláusula tem que estar, inclusive, presente na delação de Lessa. No julgamento dele no IV Tribunal do Júri, que ainda não foi marcado, deverá ser perguntado aos jurados se eles aceitam que o réu tenha benefícios de redução de pena. O júri decidirá ao responder os quesitos na sala secreta. A Constituição prevê que crimes hediondos não cabem fiança, anistia ou graça.

    Entre os benefícios oferecidos a Lessa estão a proteção integral à mulher e os dois filhos, além do retorno dele para um presídio fluminense. O prazo para que Lessa continue preso em uma penitenciária federal expira no dia 21 de março. No último dia 17, o Sistema Penitenciário Federal (SPF) se manifestou desfavorável à possibilidade de mandá-lo para uma prisão no Rio. No parecer, diretoria do órgão se opõe a essa possibilidade “devido a sua rede de contatos pessoais, intra e extramuros, além de sua experiência com a criminalidade em vertentes diversificadas”. No documento, a diretoria do órgão, vinculado ao Ministério da Justiça, cita seu “altíssimo grau de periculosidade”, com “potencial de desestabilizar” o sistema prisional de seu estado de origem. O ex-sargento da PM está preso atualmente na Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso. Já Élcio, está numa unidade federal em Brasília.

    Dos investigados por mandar matar a parlamentar, até o momento, apenas o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão tem foro privilegiado. Como Domingos Brazão é o único investigado com foro, ele disse ao GLOBO que é inocente e afirmou que, se Lessa o apontou como mandante é porque quer proteger alguém:

    — Eu venho sangrando na cruz há algum tempo com essa acusação. Pelo menos cinco anos. Já fui investigado por todas as esferas: Polícia Civil, Ministério Público e Polícia Federal. Ninguém conseguiu provar nada contra mim. Não acredito que esses servidores estivessem dispostos a colocar suas carreiras em jogo para me proteger. A investigação da morte da Marielle e do Anderson prendeu vários milicianos e nenhum está ligado a mim, porque não me misturo a essa gente — defendeu-se Brazão, afirmando ser inocente.

    O conselheiro do TCE disse que, como "bom filho de português", sempre foi muito trabalhador. Como perdeu o pai aos 18 anos, um pecuarista na área de Jacarepaguá, Brazão, mesmo sendo o caçula dos seis irmãos, passou a proteger a mãe e o restante da família. Ele contou que antes de entrar na política, sua paixão, ele vendia carros e motos. Em seguida, virou empresário, dono de 18 postos de gasolina. Atualmente, só tem um estabelecimento desse tipo. O investimento agora é em galpões em áreas de baixo valor para revenda para grandes empresas com preços elevados.

    Brazão já foi deputado estadual com expectativa de presidir a Assembleia Legislativa, mas disse que acabou assumindo uma vaga como conselheiro do TCE. Lembrou dos seis anos de afastamento devido à Operação Quinto do Ouro, quando cinco integrantes do tribunal foram presos e afastados dos cargos acusados de corrupção.

    Perguntado sobre a possibilidade de Lessa tê-lo apontado como mandante, Brazão respondeu:

    — Lessa deve estar querendo proteger alguém.

     

    Fonte: O Globo

  • Brumadinho tem mais de 23 mil acordos de indenização fechados

    Mais de 23 mil atingidos pelo rompimento da barragem da Vale na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, em Minas Gerais, fecharam acordos de indenização com a mineradora. Os dados são das instituições de Justiça e foram apresentados na última sexta-feira (19), quando o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) organizou uma prestação pública de contas. No evento, foi feito um balanço dos três anos de implementação do acordo de reparação.

    Nesta quinta-feira (25), a tragédia completará cinco anos. O rompimento da barragem causou 270 mortes e gerou grande devastação ambiental, além de destruir comunidades. Familiares dos mortos contabilizam 272 vítimas, levando em conta que duas mulheres estavam grávidas. Um acordo para a reparação foi firmado dois anos depois, em 4 de fevereiro de 2021. Ele trata dos danos coletivos. Foram previstos investimentos socioeconômicos, ações de recuperação socioambiental, ações voltadas para garantir a segurança hídrica, melhorias dos serviços públicos e obras de mobilidade urbana, entre outras.

    As partes optaram por manter as discussões das indenizações individuais em paralelo nas negociações judiciais e extrajudiciais que estavam em curso. Em parte dessas tratativas, os atingidos foram acompanhados pela Defensoria Pública de Minas Gerais. Em abril de 2019, a instituição assinou com a Vale um termo de compromisso definindo os procedimentos que viabilizaram as negociações individuais.

    De acordo com a Defensoria Pública, por meio do termo de compromisso, foram gerados até dezembro 20.806 acordos que movimentaram R$ 1,3 bilhão. A esses números, se somam as indenizações trabalhistas. Isso porque mais de 90% dos funcionários que morreram estavam trabalhando no complexo minerário e eram empregados da Vale ou das empresas terceirizadas que prestavam serviço na Mina Córrego do Feijão.

    Em julho de 2019, a mineradora e o Ministério Público do Trabalho (MPT) assinaram um acordo para o pagamento das indenizações aos familiares dos trabalhadores que morreram e aos empregados sobreviventes. Desde então, foram selados 2.509 acordos que movimentaram R$ 1,2 bilhão.

    Em nota, a mineradora afirma que, desde 2019, mais de 15,4 mil pessoas fecharam acordos de indenização. "A Vale reafirma seu profundo respeito às famílias impactadas pelo rompimento da barragem e segue comprometida com a reparação de Brumadinho, priorizando as pessoas, as comunidades impactadas e o meio ambiente", acrescenta o texto.

    A divergência entre os números apresentados pela Vale e os divulgados pela Defensoria Pública e pelo MPT pode se dar porque alguns atingidos têm direito a mais de um acordo, como, por exemplo, no caso daqueles que perderam parentes e sofreram outros impactos. Mas também há divergência nas cifras envolvidas. A Vale alega ter destinado ao todo R$ 3,5 bilhões em indenizações.

    Sem negociação
    Para a Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho (Avabrum), esse processo indenizatório foi atropelado. A entidade considera que não houve negociação. Era aceitar a oferta ou recusar.

    "Até teve uma escuta, mas não havia espaço para argumentos. E foi tudo muito em cima do acontecido. A gente ainda estava com 197 pessoas não encontradas, em meio ao caos, e as reuniões sobre as indenizações já tinham começado", diz a engenheira civil Josiane Melo, que integra a diretoria da Avabrum, e faz duras críticas ao acordo. Ela perdeu sua irmã Eliane Melo, que estava grávida de cinco meses.

    Josiane se recorda que havia um temor relacionado com um artigo da reforma trabalhista. Aprovada em 2017 por meio da Lei Federal 13.467 e sancionada pelo então presidente Michel Temer, ela definia que o pagamento máximo para indenização por danos morais em caso de acidente de trabalho deveria ser de 50 vezes o valor do salário do empregado.

    Dessa forma, os parentes de uma vítima que tivesse um salário de R$ 3 mil, por exemplo, não poderiam receber juntos mais do que R$ 150 mil. Apenas no ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou ilegal essa limitação. Assim, na época, como os valores definidos entre Vale e MPT era superiores aos previstos na lei, havia pouca esperança em conseguir melhores condições.

    "Falavam muito dessa questão do limite. Usou-se dessa possibilidade", diz Josiane. A engenheira civil avalia que as famílias ficaram acuadas. Ela, no entanto, não gosta de falar do tema. "A vida não tem reparação. Não há valor que compre uma vida. A vida não volta atrás, então pra gente nós somos os mais miseráveis. Nós perdemos aquilo que a gente tinha de mais especial que é o convívio com os nossos entes familiares, a construção dos nossos sonhos e da nossa família", acrescenta.

    Houve, porém, atingidos que preferiram buscar a indenização de forma individual, recorrendo a advogados particulares. Isso ocorreu tanto na Justiça do Trabalho como na Justiça comum. Em alguns casos, porém, a expectativa de obter cifras mais elevadas acabou sendo frustrada já que os juízes utilizaram como referência os termos firmados pela Vale com o MPT e com a Defensoria Pública. Ou seja, percorreram um outro caminho, mais demorado, para obter resultados semelhantes.

    Mas houve exceções. Em setembro de 2019, por exemplo, a mineradora foi condenada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) a pagar R$ 11,8 milhões de indenização por danos morais a quatro familiares que perderam entes queridos na tragédia. As vítimas estavam hospedadas na Pousada Nova Estância, que foi soterrada pela lama de rejeitos.

    Uma das críticas da Avabrum envolve a discrepância entre os recursos destinados às indenizações e aqueles anualmente aprovados para distribuição de lucros e dividendos. Somente no último ano, a Vale pagou cerca de R$ 28,9 bilhões em proventos aos seus acionistas.

    Liquidação coletiva
    Em março do ano passado, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) chegou a estabelecer um novo ingrediente para o processo indenizatório. O juiz Murilo Silvio de Abreu acolheu pedido do MPMG e concordou com a possibilidade de liquidação coletiva. Dessa forma, os atingidos, caso quisessem, poderiam pleitear suas indenizações de forma conjunta. No momento, porém, a decisão está revogada.

    Essa era uma demanda antiga de algumas entidades que representam as vítimas. Elas avaliam que, na negociação individual, o atingido se encontra numa posição mais vulnerável diante da mineradora.

    A decisão foi tomada pelo juiz Murilo Silvio na mesma ação em que a Vale foi condenada em 2019, de forma genérica, a reparar todos os danos da tragédia, incluindo aí os individuais, sejam eles patrimoniais (como danos materiais e lucros cessantes) e extrapatrimoniais (como danos morais e estéticos).

    Com a etapa de liquidação coletiva instaurada, se iniciaria a fase de definição de parâmetros para identificar as pessoas que têm direito à indenização, bem como os valores dessas indenizações. Para tanto, os atingidos poderiam contar com os levantamentos das assessorias técnicas que eles escolheram para auxiliá-los. Algumas delas já possuem uma matriz de danos, por meio do qual podem calcular em um processo coletivo as indenizações de cada um.

    Também havia sido fixado pelo juiz a inversão do ônus da prova. Ou seja, se o atingido alegar que sofreu um dano não reconhecido pela Vale, caberá à mineradora provar que o dano não ocorreu. A decisão nomeava ainda como perita a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Caberia a ela prestar auxílio ao juízo na hora de arbitrar os valores indenizatórios.

    Em setembro, porém, Murilo reconheceu que tomou a decisão sem intimar a Vale para se manifestar e se retratou. Ele abriu prazo de 10 dias para que a mineradora apresentasse seu posicionamento. A decisão anterior foi revogada. A Vale argumentou que a fase de liquidação não pode ser iniciada porque há estudos periciais ainda em curso, os quais serão suficientes para identificar todos os danos individuais e valorá-los. Também defendeu a liquidação de forma individual como meio mais adequado.

    Transferência de renda
    No mês seguinte ao rompimento da barragem, a Justiça mineira determinou que a Vale iniciasse o pagamento de um auxílio emergencial mensal aos atingidos. O valor fixado era de um salário mínimo por adulto, a metade dessa quantia por adolescente e um quarto para cada criança. Inicialmente, faziam jus ao benefício todos os moradores de Brumadinho, sem distinção. Nos demais municípios atingidos, o auxílio foi concedido a pessoas que residem até um quilômetro de distância da calha do Rio Paraopeba.

    Ainda no fim de 2019, ocorreu uma alteração. O critério para acesso ao benefício foi mantido, mas o valor foi reduzido pela metade para quem não residisse em comunidades diretamente afetadas pelo rejeito.

    A redução dos valores aumentou a insatisfação das comunidades atingidas que já faziam outras críticas relacionadas com a implementação do auxílio: se queixavam do critério geográfico e também do poder de decisão que se encontrava nas mãos da Vale. Era a mineradora que avaliava se cada atingido tinha ou não direito ao repasse.

    O acordo firmado em 2021 buscou atender algumas reivindicações. Foi criado um programa de transferência de renda sob gestão da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em substituição ao auxílio emergencial mensal. Além disso, foram reservados R$ 4,4 bilhões dos R$ 37,68 bilhões a serem aportados pela Vale conforme firmado no acordo.

    Pedidos negados
    A FGV teria autonomia inclusive para reavaliar todos os pedidos anteriormente negados pela mineradora. Tantos os auxílios mensais que haviam sido pagos pela Vale, como os repasses feitos através do programa instituído pelo acordo não se confundem com as indenizações individuais. O primeiro busca assegurar as condições de vida e o segundo é uma reparação pelos danos causados.

    O programa teve início em novembro de 2021. Embora tenha sido estruturado para durar quatro anos se encerrando em outubro de 2025, ele deverá ser implementado por mais tempo. De acordo com a FGV, os R$ 4,4 bilhões destinados ao programa foram empregados em um fundo e os rendimentos já proporcionaram um acréscimo patrimonial significativo. Dessa forma, ele poderá prosseguir pelo menos até abril de 2026.

    Atualmente, o repasse médio é de R$ 648 por pessoa. Alguns atingidos recebem valores diferenciados, como aqueles que são familiares dos mortos e os que viviam ou ainda vivem na chamada zona quente, onde estão os bairros mais impactados. Segundo dados da FGV, há 132.094 beneficiados, cerca de 17 mil a mais na comparação com os dados de seis meses atrás.

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