Na Bahia, quase 100 mil crianças foram registradas sem pai nos últimos dez anos

Na Bahia, quase 100 mil crianças foram registradas sem pai nos últimos dez anos

A“Não consta”. É essa a frase que os cartórios registraram, no campo do nome do pai, nas certidões de nascimento de quase 100 mil crianças nascidas na Bahia só nos últimos dez anos. Essa ausência paterna é causadora de marcas profundas na vida destas pessoas e, para boa parte delas, o abandono começa a ser melhor percebido e questionado durante a fase da escola, quando datas como o Dia dos Pais viram um trauma.

No período citado, o exato número de crianças baianas registradas sem o nome do genitor foi de 99.412 e chega próximo ao da população da cidade de Santo Antônio de Jesus, 17ª maior do estado, segundo dados compilados pela Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais da Bahia (Arpen-BA), a pedido do CORREIO.

As crianças nascidas em 2011, hoje com 10 anos, podem estar sem reconhecimento de paternidade até os dias atuais. E esses mesmos dados revelam ainda outra face cruel da negligência: são também quase 100 mil mães solo na Bahia, na última década, que estão por aí carregando as responsabilidades, muitas vezes sozinhas. Só nos anos da pandemia, portanto de 2020 até agora em 2021, já são 19,2 mil crianças sem pai na certidão.

Criado por um publicitário como forma de estimular o comércio no Brasil, o Dia dos Pais é motivo de choro para muita gente. O drama e desconforto têm tamanha intensidade que o tema virou discussão em boa parte dos colégios — que se viram diante da necessidade de repensar essas celebrações para fazê-las mais acolhedoras.

Não há consenso, mas em geral, a aposta tem sido festejar o Dia da Família na Escola, data criada há duas décadas pelo Ministério da Educação, e que vem, aos poucos, sendo incorporada aos calendários das instituições de ensino.

Em seu escritório, na escuta diária de mães solo cujos ex-parceiros abandonaram seus filhos e filhas, a advogada Mariana Regis, especialista em Direito da Família, recebe relatos de como a angústia pelo abandono paterno se manifesta nestas crianças nas semanas que antecedem a comemoração do Dia dos Pais, quando as escolas propõem confeccionar presentes ou ensaiar apresentações.

“A criança sabe que não terá destinatário para aquele presente e outras não sabem se o pai irá aparecer no dia, gerando ansiedade nelas”, conta.

Diretora pedagógica da Escola Lua Nova, na Pituba, Walkyria Rodamilans conta que, nos mais de 36 anos de existência da unidade, nunca houve uma festa para comemoração do Dia dos Pais. Por perceber que as famílias responsáveis pelos alunos têm organizações diversas — avôs, tias, duas mães, dois pais, mãe sozinha ou pai sozinho — a escola optou por ter uma programação festiva apenas para o Dia da Família.

No entanto, por decisão coletiva, a data paterna não é negada. Na escolinha, ela não chega a passar em branco, há um diálogo sobre a sua representatividade cultural. Na véspera, alunos maiores, do ensino fundamental, são incentivados a escrever cartinhas para entregar aos pais ou a quem cuida deles. Os pequenininhos não chegam a produzir cartões, mas participam da homenagem e a conversa sobre esse dia é mediada pelos professores.

“Nós falamos para eles: ‘Olha, na sociedade existe essa data e se comemora’, e contamos sobre a criação dela ligada ao consumo. A gente não retira o lugar de quem exerce essa função. É delicado negar e o que a gente propõe é o inverso, é incluir. O cartão pode ser entregue para os pais e várias outras pessoas”, diz.

No papo com os estudantes, a instituição propõe dar o nome às coisas, com expressões como ‘tem pai que não mora conosco, tem pai que já não está mais com a gente’. “A vida da gente é feita da falta de muitas coisas. A criança também vai conviver com faltas e o que oferecemos é suporte para que ela ressignifique o que vive. Não é sobre aceitar com naturalização [o abandono], mas se abrir”, completa ela.

Rastros do abandono: do berço até hoje

Quando tinha apenas dois anos, Paula de Jesus perdeu o pai. Criada apenas pela mãe, ela cresceu ouvindo como ele foi um homem violento. Embora tivesse o nome dele registrado nos documentos, isso não foi suficiente para que ela e suas quatro irmãs pudessem ser dignas de cuidado paterno. Um dia, a mãe dela precisou fugir, mudou-se para São Paulo para não mais apanhar e tentar ganhar dinheiro para comprar a casa própria.

“Foi quando ela recebeu a notícia de que ele foi assassinado. Eu e minhas irmãs crescemos vendo múltiplas violências e escassez de alimentos, mas minha mãe nunca nos abandonou e esteve do nosso lado, mesmo abdicando da sua felicidade. O sofrimento da minha mãe ainda está estampado no rosto dela e isso me impede de sentir saudades daquele pai, mas sinto falta da presença de um verdadeiro pai”, conta ela.

O pai dela era motorista de ônibus e foi morto a tiros, supostamente pelo marido da mulher casada com quem se envolveu. Hoje, vivendo um segundo casamento, Paula conta que acompanha de perto como a ausência da figura paterna também é um drama para a filha dela, atualmente com 18 anos. Ela diz que, por mais que o pai da jovem seja presente, é difícil processar a falta do convívio diário.

“Ela sofre muito desde pequena, demonstra em suas atitudes a falta que ele faz. Desde criança, ela se isolava, não queria participar de eventos na escola, teve depressão, tentou suicídio. Até hoje, ela não consegue aceitar a distância. Vejo que ela consegue assimilar melhor tudo o que aconteceu porque agora já sabe tudo que passamos, o que fez eu me separar e, por me amar, sabe que essa foi a melhor decisão”, diz a mãe.

O ciclo de Paula é parte desse abandono paterno. A conduta do pai dela gerou danos à família. “O dano é extensível às mães, que sofrem não apenas a sobrecarga material, mas sofrem emocionalmente junto com seus filhos e filhas, não raro se sentindo culpadas por terem escolhido este pai para os filhos”, destaca Regis.

Análise do contexto

Para entender o contexto familiar, o Colégio Villa Global Education instituiu o que chamam de Programa de Acolhimento, uma infraestrutura de profissionais que atuam desde o dia da matrícula, com entrevista que consiste em perguntas a fim de conhecer a história de como a criança nasceu e quem cuida dela, justamente para saber lidar com as situações.

Por lá, só há importância festiva para o Dia da Família, quando todos os alunos, do ensino infantil ao médio junto com seus parentes, se reúnem. A data conta com palestras, jogos e oficinas, estas ministradas pelos próprios responsáveis — como um pai que é nutricionista e ensina todo mundo a fazer um bolo de chocolate, por exemplo.

A ideia é uma forma de fortalecer vínculos familiares, estimular o respeito mútuo e o convívio social, afirma Bárbara Cana Brasil, diretora da unidade do Litoral Norte.

No Dia dos Pais ou Dia das Mães, a escola apenas publica cards em suas redes sociais, de forma mais institucional, a fim de dizer que acredita e valoriza esses papéis, dedicando a mensagem diretamente a eles, sem necessidade de intermediação com os alunos. Mas, se em datas comemorativas como essas, eventualmente, algum desconforto é captado pelos docentes, o Programa de Acolhimento é acionado para dar colo e escuta à criança.

Além disso, como casos de possíveis conflitos familiares podem ficar transparentes através de comportamentos dos estudantes, a escola diz que, ao notar, chama os responsáveis para uma conversa. "Porque nosso papel é formar crianças fortes e felizes", diz Cana Brasil.

O lado do pai ativista

Criador da plataforma de discussão chamada Abandono Afetivo e autor do livro “Mãe, cadê meu pai?”, o advogado Charles Bicca adianta que essas decisões em relação à celebração ou não do Dia dos Pais não surgiram do nada na cabeça das escolas. A preferência pela festa do Dia da Família veio, principalmente, a partir dos desabafos de mães.

Estudioso do tema, ele lembra que o abandono paterno está presente nos primórdios das sociedades, perceptível em histórias mitológicas gregas como a do deus Urano, genitor dos Titãs e ciclopes. “Então, existe desde o início do mundo, é uma cultura arraigada que estamos caminhando para mudar”, diz ele, que é pai de Isabela e Charles.

Para Bicca, o movimento segue na direção de incentivar uma paternidade mais responsável e, ao seu ver, retirar ou fingir a não existência do Dia dos Pais não contribui para isso. Ele diz que, há cerca de uma década, conversa com mães do grupo que criou no Facebook — com mais de 15,4 mil membros — e o que se comenta por lá é que uma boa mudança já está em curso: cada vez mais, os pais têm se mostrado melhores na formação de vínculos e na presença participativa nos colégios dos filhos.

“Para mim, suprimir completamente o Dia dos Pais porque uma parcela de irresponsáveis não cumpre seu dever, não é algo que acho razoável. Vamos mudando o mundo, mas respeitando o que deu certo na figura do pai. Não dá para deixar de prestigiar essas pessoas. Curto essas celebrações, desde que bem conduzidas”, argumenta.

Para ele, as comemorações podem ser feitas incluindo forte teor de carinho e informação na conversa. “Neste dia, pode-se dizer: ‘Olha, esse presentinho pode ser entregue para quem cuida de você’. Não tem que ser uma coisa ‘Quem tem pai levanta a mão, quem não tem senta ali do lado’. Neste dia, penso ser importante discutir som eles sobre a importância do pai responsável”, diz.

O tema é parte de um enorme problema brasileiro e, dentro e fora da escola, a criança também vai se deparar com ele. Há cinco anos, uma em cada cinco famílias em Salvador e Região Metropolitana, era chefiada por mãe solo — o maior percentual do país, segundo pesquisa do IBGE.

Bicca acredita que a primeira providência é parar de naturalizar o pai que abandona o filho. Não é um tema a ser deixado para lá. Para ele, as escolas podem discutir internamente o que melhor se aplica para sua comunidade, buscando adotar uma dinâmica de celebração que não gere constrangimento.

“É uma realidade que não podemos fechar os olhos. Ainda vamos discutir muito sobre isso, mas, enquanto pai, o que posso dizer é que quando chega esse domingo, fico na ansiedade de receber um desenho dos meus filhos”.

RECONHECIMENTO GRATUITO DE PATERNIDADE

Desde 2007, a Defensoria Pública da Bahia disponibiliza teste de DNA gratuito para os pais que desejam dar o passo de reconhecimento da paternidade. Entre os dias 9 e 20 de agosto, o órgão voltará com o programa. Da criação da iniciativa até o ano de 2019, mais de 20,5 mil exames de DNA foram feitos na Bahia.

1. Entre em contato por telefone
Para solicitar, basta entrar em contato pelo número (71) 99104-2907

2. Agende o dia e o local do exame
Combine quando deseja fazer e peça ajuda com prováveis dúvidas. Para participar, é necessário morar em Salvador ou na Região Metropolitana

3. Reúna documentos
Basta apresentar RG, CPF, comprovantes de residência seu e da mãe e também certidão de nascimento do filho ou filha

5 equívocos comuns na celebração do Dia dos Pais nas escolas
Fonte: Associação Nova Escola

1. Obrigar todos os alunos a participarem, provocando constrangimento

2. Colocar foco no presente para uma determinada pessoa e não na vinculação da atividade com um conteúdo do currículo escolar

3. Não fazer um levantamento de como é a vida de cada aluno, ignorando os diferentes tipos de família

4. Propor elaboração de atividades que não permitem a criação individual, que não possibilitam que a criança dê sua cara à obra

5. Expor a intimidade familiar do aluno aos demais colegas durante a realização da atividade

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